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O Fantasma do Inferno Azul

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Quinze anos depois do desastre do césio-137 em Goiânia, o governo ainda não sabe quantas pessoas foram irradiadas. Novas revelações comprovam o descaso com a população atingida


Ana Carvalho – Goiânia

Bira, Jair Careca, Rodneyre e Elpídio não se conheciam, mas tinham em comum uma rápida passagem pelos bancos escolares e o jeitinho brasileiro de driblar o desemprego: viver de bico. Foi em setembro de 1987 que uma oferta tentadora os uniu. Na ocasião, correu por toda Goiânia a necessidade de se contratarem “chapas” (trabalhadores braçais) para quebrar paredes, asfalto, derrubar casas e remover objetos. Em troca, receberiam salário e mais diárias que, ao fim de uma semana, representavam o que conseguiam ganhar no mês. 


Jair José Pereira, pedreiro, recebeu a proposta na praça A, no bairro de Campinas, ponto de braçais. Aceitou e na mesma hora foi posto em uma Kombi branca, sem logotipo. Ubirajara Rosa de Souza fez o mesmo. Elpídio Evangelista da Silva e Rodneyre Ferreira souberam por amigos das contratações e apresentaram-se no escritório da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) em busca de uma vaga. Os quatro começaram a trabalhar na rua 57, no centro de Goiânia, foco inicial do maior acidente radiológico do mundo: o vazamento de pouco mais de 17 g de cloreto de césio-137, que se encontrava em um aparelho abandonado no Instituto Goiano de Radioterapia.

Os quatro não tinham noção do que era radiação e muito menos do que era césio. Tampouco foram informados dos cuidados necessários para a execução dos trabalhos, inclusive no depósito de lixo radioativo de Abadia, cidade a 20 quilômetros de Goiânia, para onde foram transferidos após a limpeza das áreas “quentes” (de alto grau de radiação). A contratação de “chapas” e a convocação de militares e civis do Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa), da Companhia de Limpeza Urbana e até da empreiteira Andrade Gutierrez marcavam o início de uma guerra surda para salvar Goiânia do brilho azul fluorescente, que encantou a família de Leide das Neves Ferreira. Aos seis anos, Leide foi a primeira das quatro vítimas fatais da tragédia que não só abalou o País como mostrou e ainda mostra sua face mais perversa: o preconceito contra os radioacidentados.

O festim diabólico do césio-137 se anuncia antes mesmo de seu début, em setembro. O número de vítimas desse acidente está longe de ser fechado. Ele ultrapassa as 621 pessoas classificadas em três grupos de contaminação (I, II e III). Entre civis, a CNEN e depois o Crisa contrataram, nas ruas e através de empresas terceirizadas, cerca de 250 braçais para juntar-se aos cerca de 220 funcionários do consórcio. 


Todos que trabalharam nas áreas isoladas ou no depósito de Abadia entraram em contato com a radiação em vários graus. O mesmo aconteceu com centenas de PMs, bombeiros e até soldados do Exército, conforme apura inquérito aberto pelo Ministério Público Estadual. O promotor Marcus Antônio Ferreira Alves, do Centro Operacional de Defesa do cidadão, luta para que o governo de Goiás indenize e ampare as vítimas da radiação, até então não reconhecidas. “A versão da CNEN é de que a radiação não afetou o grupo que trabalhou nas áreas quentes. Mas tenho o relatório de doses, e não é bem isso que ele mostra. Tenho depoimentos que relatam que os medidores tinham os alarmes sonoros desligados para não causar pânico nos trabalhadores.” Ferreira Alves quer incluir na lista de vítimas do césio mais de 600 pessoas. Ele propõe pensão vitalícia de R$ 360, e para os militares uma promoção de três patentes. 


Quanto aos “chapas”, vai encaminhar o inquérito de mais de oito volumes e três mil páginas para o Ministério Público Federal. “Costumo dizer que tamparam o lixo e ele agora está vazando. Preocuparam-se com o lado material e esqueceram o humano. Quem paga pelo abandono dessas pessoas?”, questiona. O assessor da presidência da CNEN, Alfredo Tranjan, afirma que todos que trabalharam em áreas controladas foram monitorados e cadastrados. “Acompanhávamos as doses, e muitos que estão reclamando não eram cadastrados. Acho estranho que os servidores da CNEN, que receberam doses mais altas do que os que estão reclamando, não tiveram nada”, afirmou.

Farsa – Quinze anos depois, Bira, Jair, Rodneyre e Elpídio continuam “chapas” em todos os sentidos. Mas não é só a camaradagem que os une. Eles já apresentam sintomas da radiação que tomaram durante o tempo que trabalharam diretamente no acidente. Até 1993, apenas os quatro eram os encarregados pelo depósito provisório e trabalhavam das 8 às 18h. Em depoimento, contaram que viajaram junto com tambores de lixo radioativo, além de colocá-los e retirá-los de caminhões e kombis, principalmente quando as empilhadeiras quebravam. De serventes, conforme os contratos, foram alçados a técnicos da CNEN. A imprensa registrou inúmeras vezes os braçais vestidos de macacões e contadores Geiger à mão passeando entre as 13,4 toneladas de lixo radioativo. Segundo eles, uma farsa. “Ninguém sabia que não éramos técnicos.

Durante muito tempo, não havia restrição para nós. Permanecíamos em áreas controladas sem saber ao certo o tempo permitido. As canetas dosimétricas estouravam com frequência”, ou seja: atingiam a carga máxima de radiação, revelou Elpídio, que chegou a chefiar os companheiros em Abadia. Munido de fotos suas e de Bira no depósito, publicadas na revista Manchete, ele acusou os técnicos da CNEN de não terem informado quais os locais de maior radiação ou como utilizar os aparelhos medidores.

O fato mais grave revelado por Elpídio e confirmado pelos outros três está relacionado à deterioração dos tambores de lixo. “Tirávamos os rejeitos do tambor furado ou enferrujado e passávamos para outro, manualmente. O danificado era amassado a marretadas e colocado em uma caixa metálica”, afirma Elpídio em seu depoimento. Rodneyre faz coro e acusa o físico Walter Mendes Ferreira de negligência.


Segundo os “chapas”, ele só comparecia ao depósito provisório para receber equipes de reportagem ou técnicos internacionais. Fora isso, tratava os problemas que lá ocorriam pelo rádio. A ordem, em dia de visita, era virar os tambores enferrujados, remendá-los e pintá-los com spray amarelo ou cobri-los com lona para que as câmeras não pudessem filmá-los ou fotografá-los, contaram eles ao MP. Segundo Tranjan, a maioria que atuou em Abadia era do Exército, especializada em armas químicas. “Do Crisa, usamos motoristas e alguns operadores de máquinas.”

Elpídio está no grupo III, Rodneyre e Jair não se enquadram em lugar algum. Bira disse que chegou a ficar um mês afastado por ter sofrido forte dose de radiação. Rodneyre e Jair moram em casas humildes na periferia da capital e continuam vivendo de bicos. Elpídio pediu demissão do hotel em que trabalhava como copeiro para cuidar da saúde. Eles evitam contar que atuaram no acidente. “Se a gente fala, tá lascado. Aí é que não arruma nada mesmo. O pessoal acha que, se a gente adoece, pode passar pra eles”, diz Jair, que leva a vida “sem pensar muito nessas coisas”. Jair só lembra do césio quando se dá conta de que não consegue mais exercer seu ofício de pedreiro. “Não posso me abaixar para assentar um piso. Sinto muitas dores no corpo. Dente, perdi um monte. Não sou mais o mesmo. Naquele dia, eu ainda brinquei dizendo que não voltava para casa sem o feijão. Se eles tivessem contado o que era, eu não ia.

A situação de Rodneyre também é dramática. Desempregado, fez uma cirurgia em 1998, sete anos após ser demitido do depósito de Abadia, para tirar uma massa com um líquido escuro da perna. “Eu tinha tanta dor e febre altíssima que chegava a delirar. Nem o médico soube me dizer o que era aquilo.” No fim de 2001, teve uma ruptura intestinal e passou oito meses com uma bolsa de colostomia (externa ao corpo). Rodneyre também não contou aos médicos que trabalhou na remoção e no depósito dos rejeitos do césio. “Se contasse, corria o risco de não ser operado”, afirma ele, traduzindo o preconceito que ainda existe na cidade.

O médico americano Robert Gale, que cuidou das vítimas de Chernobyl, o maior acidente nuclear do planeta, ocorrido na antiga União Soviética em 1986, chegou a estimar que de cinco a dez mil pessoas precisariam de acompanhamento em Goiânia, mesmo com riscos mínimos, por serem vizinhas das principais áreas de foco de radiação. 


Ele defendeu o monitoramento para que surpresas fossem evitadas no futuro. No dia 19 de dezembro de 2001, uma nota técnica da Fundação Nacional de Saúde admitiu que o tempo médio de latência do césio é de 15 anos e há possibilidade de um crescimento progressivo de incidência de câncer naqueles que foram expostos diretamente ao acidente (5,4 vezes em homens e 3,3 vezes em mulheres). 


A nota abre ainda a possibilidade de existirem mais vítimas do que as já cadastradas quando recomenda que seja contratado um centro qualificado de epidemiologia para pesquisa e acompanhamento “visando incluir a totalidade da população exposta ao césio, uma vez que essa atividade ainda não foi contemplada.”

Latência Em depoimento ao MP, a oncologista Maria Paula Curado, que acompanha os radioacidentados há 15 anos, reconhece que o critério para classificação das vítimas não corresponde à realidade constatada. Segundo ela, as pessoas que receberam baixas doses de radiação desenvolveram câncer e outras doenças. Ela advertiu que é um erro pensar que a radiação provoca apenas câncer. O mais comum, disse, é a ocorrência de doenças como hipertensão, gastrite, síndrome do pânico, radiodermite, doenças periodontais, má-formação congênita em crianças e atraso no crescimento. Ela confirmou ser consenso que a radiação contínua pode causar várias doenças.

O segundo-tenente da PM Edvaldo Martins Gomes, hoje com 38 anos, o mecânico Nilton Pereira dos Santos, 56, e o motorista Nephtali Barbosa Lagares – que aos 42 anos morreu de câncer em vários órgãos em janeiro de 2001 – são alguns dos muitos que não estão na listagem das vítimas do césio. Nephtali e Nilton estavam entre os funcionários do Crisa. Nilton tem um tumor maligno no pescoço e há suspeita de que esteja desenvolvendo um câncer linfático. 


Edvaldo, 38 anos, se emociona ao contar o que tem passado. Ele trabalhou como subcomandante da fiscalização do depósito de Abadia entre 1996 e 1997. Um melanoma (câncer de pele) na altura do tórax desestruturou sua vida. Em seguida, apareceram dois nódulos nas costas. “Os policiais quando examinados mostravam grau de radiação e a CNEN mandava que se afastassem, mas eles já tinham passado mais de 24 horas no local”, lembra. Edvaldo vive em tratamento psicológico. Perdeu a casa onde morava, trancou a faculdade e ganhou medo e revolta. “Meu dinheiro era para comprar remédio. Não tinha como pagar aluguel e pôr comida em casa. Agora, descubro que estou com a próstata aumentada e há possibilidade de recidiva do melanoma em 30%. Mas os médicos não acham que fui uma das vítimas do césio.” Por ironia, hoje ele mora e vigia o antigo escritório da CNEN montado na rua 57, a três casas de onde o inferno azul começou.



Dias de terror
13/14 de setembro de 1987 – Os sucateiros Roberto Alves e Wagner Mota Pereira retiram do abandonado Instituto Goiano de Radioterapia um equipamento contendo césio-137. No número 68 da rua 57, rompem o lacre a marretadas.
18/19 – Contaminados, vendem a peça para Devair Alves Ferreira, dono de um ferro-velho na rua 26-A. Encantado com o brilho forte e azulado, chama vizinhos, amigos e irmãos e distribui pedrinhas de césio.
28 – Maria Gabriela, mulher de Devair, aciona Geraldo da Silva para levar o que restou do césio para a Vigilância Sanitária. É dado o alarme do maior acidente radiológico do mundo.
23 a 28 de outubro – Morrem Maria Gabriela e a sobrinha Leide das Neves, seis anos, que engoliu a substância, o funcionário de Devair, Israel dos Santos, 22 anos, e o catador de papel Admilson Alves de Souza, 18, que morava nos fundos da casa do dono do ferro-velho.


- Revista Isto É - Edição nº 1703 - Especial – Brasil - 17/05/2002

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