Relatório da Associação de fiscais de Radioproteção aponta falhas da Cnen e possibilidade de novos acidentes
A Questão Nuclear
ANDRÉ SOLIANI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
MICHELE OLIVEIRA
DA REDAÇÃO
O Brasil pretende ampliar o seu programa nuclear, mas ainda conta com uma fiscalização frágil e desestruturada para garantir a segurança das instalações radioativas no país.
A Afen (Associação dos Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear) e especialistas consultados pela Folha apontam a falta de poder da Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear) para obrigar usuários de fontes nucleares a seguir normas de segurança, o conflito de interesses dentro da comissão -que tem a função de estimular e, ao mesmo tempo, fiscalizar o uso de energia atômica- e falhas no controle das fontes existentes no país como problemas carentes de correção.
Relatório elaborado pela Afen em 2000 e reconfirmado neste ano afirma que há "a possibilidade de ocorrência de acidentes nucleares e radiológicos em território brasileiro, fruto das vulnerabilidades existentes". A Afen representa 150 dos 310 fiscais da Cnen, que tem 3.000 funcionários.
Uma série de eventos, compilados pelo deputado federal Edson Duarte (PV-BA) e confirmados pela Cnen, demonstra a necessidade de rever a atual legislação que regulamenta o setor. "Parece que não aprendemos o necessário com o acidente nuclear com o césio-137, em Goiânia", afirma Duarte. Em 1987, uma fonte de césio abandonada em Goiânia matou sete pessoas.
"O problema é que a Cnen tem, ao mesmo tempo, a responsabilidade pelo fomento e pela fiscalização da energia nuclear no Brasil. Isso claramente tem aspectos conflitantes. É preciso existir duas administrações independentes para que não haja conflitos de interesses", diz o professor Anselmo Paschoa, da PUC-RJ. A Cnen não tem instrumento legal para punir os controladores de usinas de energia, hospitais, clínicas, indústrias e mineradoras que não observam as normas de segurança ao manusear material radioativo.
"Temos o poder de fechar a operação em casos extremos", diz Odair Dias Gonçalves, presidente da Cnen. Mas práticas inadequadas que não justifiquem a suspensão da concessão costumam passar impunes. Mesmo o poder de cassar as autorizações de operação é limitado. "Não é claro se podemos fechar operações com fontes radiológicas", diz o presidente da Comissão.
Fontes radiológicas, como o raio-x de aeroportos, emitem radioatividade a partir de aceleradores movidos a energia elétrica. Nesses casos, a comissão depende da ajuda da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A falta de poder de polícia da Cnen faz com que muitos usuários não invistam na segurança. Em 2002, duas fontes de césio-137 foram roubadas da Companhia Siderúrgica de Tubarão, no Espírito Santo. As fontes foram encontradas num terreno baldio. Era o mesmo material que causou o acidente em Goiânia. A fragilidade também se revela quando a comissão precisa resgatar fontes em desuso. Muitas dessas fontes, se roubadas, poderiam ser usadas para fabricar as chamadas bombas "sujas". Neste ano, um incêndio na Poesi (fábrica de lingerie, no Rio de Janeiro), que estava falida, também revelou que o cadastro de fontes da Cnen é incompleto. Quando os bombeiros chegaram, acharam um equipamento de baixa radioatividade usado para medir a espessura dos tecidos. A fonte não estava no cadastro da comissão. Mais grave: uma das duas fontes havia sido roubada.
A Cnen, segundo documento elaborado por sua diretoria, também sofre com a falta de recursos humanos para cumprir suas funções. "Considerando-se o elevado número de instalações e atividades fiscalizadas pela Cnen, torna-se evidente a insuficiência desse corpo técnico de fiscalização."
Para corrigir essas deficiências, a Afen quer uma legislação que garanta aos fiscais nucleares os mesmos poderes de fiscais do Ibama, da Receita Federal e da Anvisa. Os membros da Afen defendem uma nova legislação com punições claras para condutas que fujam das normas de segurança. A Cnen apóia a nova legislação, mas discorda em dar aos fiscais o poder de polícia.
Dupla função da Cnen é criticada por cientistas
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
DA REDAÇÃO
Especialistas, cientistas e ambientalistas se posicionaram contra o fato de a Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear) acumular a função de fiscalização da atividade nuclear no país e o monopólio da exploração de urânio. O alerta já foi dado pela comunidade científica, preocupada com um suposto conflito de interesses e os riscos que a sobreposição de atribuições poderia gerar.
"A Cnen se divide entre fiscalizar e pesquisar/desenvolver. Isso é um problema institucional que tem de ser resolvido. Há um conflito de ações, que é mais antigo do que andar para frente. Todo mundo concorda com isso [separação das funções], mas não se faz nada", afirma o professor de energia nuclear Aquilino Senra, da Coppe (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação e Engenharia) da UFRJ. "É importante ter um órgão fiscalizador forte, independente e atuante." Senra questiona um dos argumentos utilizados para justificar a não-separação imediata: o alto custo gerado por duas administrações distintas. Na avaliação da Cnen, o mercado nuclear é restrito no país e a divisão da comissão em duas entidades - uma só para fiscalizar e outra para incentivar e desenvolver a tecnologia nuclear - poderia enfraquecer ainda mais o setor.
"Custar caro não é um argumento viável. É muito melhor gastar antecipadamente. Antes do acidente, Goiânia era um dos Estados que mais crescia no país. Depois, ficou parado por 14 anos", diz o professor Anselmo Paschoa, do Departamento de Física da PUC-RJ. Para Paschoa, a possibilidade de acidentes envolvendo fontes radioativas no Brasil não pode ser relacionada ao acúmulo de funções da Cnen. "Qualquer país com atividade nuclear tem risco. Ele existe. Acredito que estamos preparados, mas deveríamos estar melhor", afirma. Segundo ele a separação de funções na comissão serviria para acabar com suspeitas. "Os conflitos não se dão por má-fé. Mas, enquanto houver isso [múltiplas funções da Cnen], fica a suspeita de que tem algo errado."
Transparência
Outra crítica à atuação da Cnen é a falta de divulgação do trabalho realizado e dos danos que a radioatividade pode causar. Para Marcelo Furtado, do Greenpeace, há "falta de transparência no processo de fiscalização". "Não temos noção do tamanho do problema e isso nos preocupa."
Já Senra, da UFRJ, cita a questão da falta de informação da sociedade sobre o assunto nuclear. "É preciso uma campanha de divulgação para a população sobre o risco de manuseio de materiais radioativos. A Cnen não tem feito a divulgação na medida certa."
(AS E MO)
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO - 12 de dezembro de 2004
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