AUSÊNCIAS
A sombra impressa pelo clarão da explosão. Uma pessoa estava sentada nesses degraus. Desintegrada instantaneamente, apenas a sombra dela restou. Foto: Hiroshima Peace Memorial Museum |
Quando o assunto é bomba atômica, algumas imagens são iconográficas. Tornaram-se clichês em nossa memória. De imediato vêm à mente o cogumelo de fumaça e as ruínas esqueléticas de um único prédio que permaneceu em pé no centro de Hiroshima, numa paisagem onde tudo mais virou cinzas e escombros que não passam da altura dos joelhos. Curiosamente, não há nessas imagens a presença de pessoas.
Não vincular tais imagens de destruição a pessoas não é um acaso. Durante décadas evitou-se mostrar o que a bomba atômica causou aos habitantes de Hiroshima e Nagasaki. Mesmo considerando-se o grau de preconceito anti-nipônico que havia no ocidente durante a 2ª Guerra, mostrar as imagens do que as explosões causaram à carne humana, era censurado. Durante anos relatos dos sobreviventes e imagens de restos mortais que se misturaram aos escombros do que antes foram cidades cheias de vida e atividade, cada uma na época com mais de 200 mil habitantes, não puderam ser trazidos à tona na grande imprensa.
Entre os japoneses, durante décadas, as palavras "bomba atômica", "Hiroshima" e "Nagasaki" foram um tipo de tabu e raramente eram pronunciadas juntas numa mesma frase. Tendo se passado mais de 60 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, logo não haverá mais sobreviventes das explosões para relatar suas tristes experiências, mas o legado permanece através de algo menos visível. As novas gerações de japoneses e seus descendentes aprendem o significado da bomba atômica, antes mesmo de saber exatamente o que ela foi, através de ausências. Permitam-me contar duas histórias individuais.
Yppe Nakashima foi um imigrante japonês que veio viver no Brasil logo que as relações diplomáticas entre ambos os países, suspensas durante a 2ª Guerra, foram retomadas. Ele se estabeleceu em São Paulo, num grande edifício de apartamentos no centro da cidade. Era um artista formado em Kyoto, onde também aprendeu técnicas cinematográficas e animação. Em sua nova pátria Nakashima passou a atuar em publicidade, mas ele tinha um projeto pessoal mais ambicioso: realizar o primeiro desenho animado longa-metragem em cores do Brasil. Meus avós maternos moravam no mesmo prédio em que Nakashima-san morava, e tornaram-se amigos.
Nos anos 60, com recursos limitados, Nakashima-san teve a idéia de recorrer à colônia japonesa para realizar seu longa-metragem animado. Ele não pediu dinheiro, mas mão-de-obra voluntária. Ele publicou anúncios em um jornal da colônia pedindo para pessoas que tivessem alguma aptidão para desenhar que viessem ajudá-lo na produção do desenho. Ele não tinha condições de remunerar seus auxiliares, mas retribuia os colaboradores com hospitalidade e refeições. Aos amigos que não desenhavam, ele pediu ajuda de outras formas. A família de meu avô fez parte de um tipo de mutirãozinho que durou meses, reservando páginas de revistas de fotos em cores, que Nakashima-san depois selecionaria, recortaria e montaria para usar em sua animação. Minha mãe chegou a pintar acetatos para o Nakashima-san, que em retribuição a presenteou no dia de seu casamento com um quadro em aguada, com a vista da cidade que ele tinha da janela de seu apartamento, mostrando o alto dos edifícios da Avenida Paulista no horizonte.
Numa tarde, meu avô me convidou para ir ao cinema para ver "Piconzé" - um desenho que estava sendo anunciado com ênfase nos jornais da colônia, mas do qual mal havia um anúncio nos jornais em português. Fomos a um pequeno cinema, que ficava numa galeria na rua Barão de Itapetininga. Havia pouca gente na platéia. Na volta para casa, andando pelas ruas esvaziadas no fim da tarde, meu avô me comentou, estranhamente entristecido, que o desenho que tínhamos acabado de ver havia sido feito pelo Nakashima-san - uma obra que levou dez anos para ser realizada. E daí ele me contou que o amigo havia morrido fazia pouco tempo. Mesmo para os padrões da época, Nakashima-san faleceu jovem, na casa dos 40 anos. Depois, fiquei sabendo que ele era um sobrevivente de Nagasaki. Ele parecia uma pessoa normal, mas desde a explosão sua saúde tornou-se frágil. Não houve exames ou testes científicos que ligassem a morte dele à radiação - nada havia no Brasil na época para apurar isso. Já em minha infância a expressão "bomba atômica" tornou-se sinônimo de uma assombração que era capaz de perseguir suas vítimas, por mais tempo que se passasse, por mais distante que elas estivessem do local onde a coisa ocorreu.
Em 1984, entrei num cursinho para me preparar para a Fuvest. No segundo dia de aula conheci uma menina de 18 anos, Leiko. Eu e uma menina não-descendente que estava concorrendo a uma vaga em jornalismo nos tornamos colegas dela. A que chegasse primeiro reservava lugares para as demais, uma vez que as salas ficavam lotadas nos primeiros meses de aula. Leiko era afável, mas não era de conversar. Era com certeza a mais séria de nós três. Durante algum tempo, ela freqüentou diariamente o cursinho, e depois começou a faltar um dia ou dois por semana. Quando perguntávamos o que tinha ocorrido, ela apenas respondia que tinha passado mal. Nunca suspeitamos de algo sério. Um dia, ela parou de vir às aulas, mas continuamos reservando uma carteira para ela. Durante duas semanas esperamos que ela voltasse.
Quase um mês após a última vinda da Leiko ao cursinho, o professor de química entrou na sala alterado. Ao invés de "despejar" a matéria de imediato como de costume, ele disse que estava vindo de um funeral de uma menina que estudava em nossa sala: ela. Eu e minha colega tivemos um choque. O professor, que conhecia a família dela, passou a contar a história de uma tragédia familiar. Os pais da Leiko eram sobreviventes da explosão de Hiroshima. Sem seqüelas aparentes e acreditando que não haviam sido afetados pela radiação, tiveram filhos e construiram uma vida na nova pátria. Tudo ia bem, até que no ano anterior o filho do casal, irmão mais velho da Leiko, foi diagnosticado com leucemia e faleceu em poucos meses, aos 18 anos. Um ano depois, a filha também morre, da mesma forma e com a mesma idade que o irmão. Os pais estavam mais do que inconsoláveis - amigos e familiares temiam que eles fizessem algo contra si mesmos. Cientistas afirmam que as taxas de câncer entre os sobreviventes da bomba são "levemente acima do normal". Fiquei me perguntando como esses cientistas explicariam isto a aqueles pais? Transtornado, naquele dia o professor trocou as regras das equações químicas e as musiquinhas para decorar a tabela periódica por um discurso contra as armas nucleares. Até hoje me recordo da explicação do "efeito foguete", relatado por mães que tiveram seus bebês arrancados das costas pela força do vento da explosão (as mães japonesas tinham o hábito de carregar os bebês com grandes lenços amarrados nas costas).
Sei que são meras conjecturas, mas não consigo deixar de pensar no que Nakashima-san e Leiko poderiam ter realizado se tivessem tido mais tempo. E no quanto essas mortes prematuras me parecem injustas. Enquanto seu corpo permitiu, ela veio ao cursinho - atitude de quem confia no futuro, tem esperança. Nakashima-san tinha esboços para um segundo longa-metragem animado. Recentemente, "Piconzé" teve seu valor reconhecido ao ser restaurado e exibido pela primeira vez no Japão, no Festival Internacional de Animação de Hiroshima, representando o Brasil.
É desta maneira - por ausências - que muitos japoneses e seus descendentes aprendem o que é a bomba atômica. É algo muito diferente da técnica, fria e científica descrição que a maioria dos livros expõem.
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