O acordo Estados Unidos-Rússia para redução progressiva de armas nucleares não pode receber do governo brasileiro celebrações sinceras em nome do planeta, do futuro e, em particular, do Brasil. O que seja dito com aparência de louvação ao acordo esconde a percepção grave, e inevitável, de que devem esperar-se inconveniências e mesmo problemas maiores para o projeto nuclear que o Brasil desenvolve, seja qual for a dimensão desse objeto de disfarces e segredos.
O sentido imediato do acordo é o de comprovar que o tão sonhado processo de desnuclearização ressurge para ser real e para valer. Reduzido a ruínas por George Bush, com seu projeto de restabelecer o muro de mísseis entre a Europa e, de outra parte, a Rússia e países asiáticos, o processo não apenas revive, mas o faz já como compromisso de trabalho e com um programa de meta obrigatória. Daí resultam, por certo, projeções fortes sobre os países ainda desprovidos de arsenais atômicos e, por qualquer forma e qualquer medida, envolvidos com projetos nucleares.
O governo Lula já emitiu, de diferentes pontos, a opinião de que o Brasil não devia ter-se incluído no velho Tratado de Não-Proliferação de Armas Atômicas. O argumento principal dos Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, ao menos para efeito público, é de que o compromisso restritivo atinge a soberania nacional. O que leva a deduções simples. Ou o Brasil reconhece haver assinado o tratado como um país subalterno, submisso a ordens externas, ou o fez por decisão soberana e, portanto, sua presença no tratado é afirmação de soberania, não de negação. Além disso, o tratado seria tão restritivo de soberania quanto o é, por exemplo, o tratado que impede o Brasil de implantar bases, ainda que científicas, onde quiser na erma vastidão antártica.
O Brasil é tocado pelo acordo EUA-Rússia já de imediato. Maio será atravessado pela reunião internacional do Tratado de Não-Proliferação, em princípio destinada a atualizá-lo. Diante dos problemas internacionais representados por Irã e Coreia do Norte, tal atualização, mesmo quando pensada lá atrás, só poderia significar maior rigor em relação a projetos nucleares. E o acordo de americanos e russos vem sugerir o agravamento da tendência inicial. Como um problema para o Brasil.
Não se sabe o que o governo Lula se propôs a defender na reunião, mas já definira sua posição contrária à revisão, pressentindo o endurecimento. Até poucos anos, o Brasil foi beneficiado pela tolerância da Agência Internacional de Energia Atômica, da ONU, em sua recusa a permitir a inspeção de praxe no enriquecimento de urânio operado em Resende, Estado do Rio. Alegava a criação de um processo próprio, que ainda não desejava expor, e a AIEA relutava um pouco em favor das aparências, para logo ceder. As condições mudam depressa.
As providências armamentistas do Brasil suscitaram desconfianças antes inexistentes. A AIEA e a orientação geral da ONU não querem mais dúvida como a havida com o Iraque, nem mais surpresas como as causadas por Coreia do Norte e Irã. A posição do governo Lula em relação ao Irã de Ahmadinejad provoca suspeitas generalizadas. As quais se combinam, e se fortalecem mutuamente, com as suspeitas decorrentes da "aliança estratégica" decidida por Lula, só ele, com a nuclearizada e comercial França de Nicolas Sarkozy.
A isso vem se somar, na má hora das novas discussões sobre o Tratado de Não-Proliferação de Armas Atômicas, o irradiante acordo que é a segunda grande vitória de Barack Obama em cinco dias. Esta, relativa a sua promessa de combater a nuclearização militar do mundo. A complacência se aproxima do fim -o que significa a aproximação de problemas para o Brasil e seus novos segredos.
Fonte:
Autor(es): JANIO DE FREITAS |
Folha de S. Paulo - 28/03/2010 |
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