Projeto Césio 137, Goiânia não merecia!
Em 13 de setembro de 1987 dois rapazes que estavam desempregados, encontraram nos escombros de uma clínica radiológica, um aparelho que outrora fora usado em seções de radioterapia. O Instituto Goiano de Radiologia já há dois anos (segundo os proprietários) havia mudado de endereço, e como tinha um entrevero com o estado envolvendo a locação do imóvel, aquele aparelho foi proibido por força de uma liminar judicial em ser retirado do local, os donos daquilo não se preocuparam em deixar vigia no local que estava totalmente desprotegido. O tempo passou e corroeu o prédio que naquela data só as quatro paredes e o teto guarneciam o objeto, já não havia mais portas nem janelas, os transeuntes usavam o espaço para defecar e urinar, o mato também fazia parte da funesta paisagem do local.
Naquele domingo um dos rapazes passando pelo local mais uma vez, já que não fora a primeira, verificou que sem muito trabalho nem sacrifício daria para retirar parte daquilo que lhe apresentava como totalmente desconhecido, sem símbolo ou escrita que pudesse identificá-lo. Notou que se de duas pessoas seria mais fácil devido ao peso, voltou em casa pegou um carrinho destes usado na construção civil, chamou um amigo e foram em busca do objetivo. Aquela esquina (Avenida Tocantins com o Paranaíba) é exatamente onde foi construído e hoje funciona o Centro de Conveções e Cultura de Goiânia, a seis quadras dos Palácios das Campinas (Municipal) e das Esmeraldas (Estadual), Onde o fluxo de veículos e pessoas sempre foi muito intenso, deixando a entender que qualquer um pudesse ter feito o que fizeram, não encontraram obstáculo algum nem chaves ou marretas foram usadas, a impressão que tiveram é que alguém já havia retirado alguma coisa ou parte do estranho objeto.
Uma vez retirado dali o levaram para a Rua 57 nº. 68 no Setor Central, naquele número moravam muitas famílias, era um lote com barracões para alugueis, mais ou menos 12 crianças com seus pais, ali o cilindro de chumbo e metal foi violado e o lacre que protegia a cápsula de Césio 137 fora rompido, disponibilizando fragmentos de césio a quem quisesse admirá-lo, tocá-lo, manusear ou até mesmo ingerí-lo, o que normalmente as crianças fazem. O estranho e desconhecido objeto ficou ali debaixo de uma mangueira em cima de um velho tapete do dia 13 a 18 quando foi levado e vendido por 1.600 Cruzados (moeda vigente na época) no depósito de ferro velho que existia na Rua 26/a, quase esquina com a Avenida Oeste no Setor Aeroporto. O cilindro vendido pesou 98 kg. Era composto de metal e chumbo.
Foto aerea da Rua 57 - Parte de concreto era a casa onde a capsula foi aberta.
Este foi o local onde o maior número de pessoas e animais tiveram contato com o nocivo material, os trabalhadores do comércio, os moradores da região, os parentes do proprietário e dos funcionários, os trabalhadores de outros estabelecimentos que compravam ali, já que era um comércio de compra e venda de sucatas, e ainda os catadores que não eram funcionários fixos do estabelecimento. Do dia 18 a 28 todos que por ali passaram evidentemente se contaminaram, pois os rapazes que trabalhavam ali eram encarregados de fazer a separação de matérias, já que cada uma tem um preço diferente na hora de revender ex: chumbo, metal, ferro e aço inoxidável etc. ao movimentar o volume partículas radioativas emanavam do ambiente, pessoas e animais transitavam no ambiente, dinheiro em quantidade e espécie passava de mão em mão.
A cápsula de césio estava acoplada em uma peça que foi chamada de marmita graças ao seu formato e tamanho, esta “marmita” era composta de chumbo recoberto por aço inoxidável que não foi paga pelo dono do ferro velho devido ao seu revestimento que não tinha valor financeiro compensatório, além de ser muito difícil fazer a separação, para cortá-la só no maçarico. Esta “marmita” pesou 22 kg. Mas não foi paga.
A complexidade nociva do material radioativo é imensurável, assim cada organismo reagiu de uma forma, os sintomas sentidos após o contato variaram, alguns já no primeiro momento tiveram febre alta, náuseas, vômitos, diarréias, urticárias, insônias, dores de cabeça e nas juntas, sangramentos principalmente nas gengivas, escurecimento de pele (queimaduras), de perda de olfato, tato, paladar e amolecimento dos dentes. Com o adoecimento das pessoas a contaminação se alastrou, pois era a busca por médicos, farmacêuticos, drogarias e as visitas de parentes e amigos, nestes momentos de dor a solidariedade aflora e os contatos físicos e diretos aconteceram, aumentando o número de pessoas e objetos contaminados e/ou irradiados, cada novo contato passara ser uma fonte radioativa em potencial!!!
Com tanta coincidência em sintomas sentidos começaram a desconfiar da tal peça que estava no ferro velho, assim no dia 28 a esposa e dona do ferro velho juntamente com um funcionário levaram aquilo para ser examinada na Vigilância Sanitária estadual. As dificuldades em reconhecer o objeto eram enormes, não havia símbolos, escritas ou sinal que pudesse identificar um objeto tão estranho, e como também não havia aparelhos capazes de diagnosticar qualquer possível ruído ou aroma todos os funcionários da estatal se contaminaram. Por acaso estava de passagem em férias na cidade um físico nuclear que tinha contatos com alguém da terra, este sendo avisado buscou emprestado na antiga NUCLEBRÀS (hoje, INB) um aparelho para medição de radioatividade, de contador Geigner na mão rumou diretamente para a ViSa. Onde estava a tal peça, ao se aproximar levou um grande susto, pois ainda a muitos metros do local o aparelho disparou dando sinal emitindo ruídos tamanha era o grau de radioatividade nas proximidades.
Uma vez constatada a situação o primeiro passo foi entrar em contato com as autoridades, tomar decisões em como e o que fazer com aquilo, buscar e isolar as pessoas que tiveram contato direto com o material que agora já era quase certo ser césio 137, envolvendo o Corpo de Bombeiros e a Polícia Militar. Primeiro apareceram os Bombeiros com ordens de pegar o material e jogá-lo no rio Meia Ponte, isto só não aconteceu porque o Técnico em Física não deixou. O trabalho de buscar as vítimas diretamente atingidas pelo ocorrido foi iniciado por volta das 22 horas do dia 29, as autoridades já haviam preparado através do Exército algumas barracas no centro do campo de futebol estádio Olímpico, onde fizeram exames preliminares e a classificação de quem teria recebido mais ou menos contaminação e/ou irradiação, isto feito veio à determinação que se cumpriu, quem foi menos contaminado ficou no estádio, os outros foram levados para o Hospital de Doenças Tropicais (HDT) em regime de quarentena, de imediato a população goianiense foi convidada através da mídia a passar pelo (QG) da CNEN para ser monitorada, pelo menos quem passara por onde estava a cápsula nos últimos dias, no dia seguinte longas filas se formaram em frente ao Ginásio Rio Vermelho e Estádio Olímpico, lá estavam os técnicos da CNEN ouvindo relatos e medindo o grau de contaminação e/ou irradiação que as pessoas teriam recebidos ou foram expostas, nos dias seguintes 112.800 foram monitoradas, provando assim o grande número de pessoas que certamente passara ou imaginara ter passado pelos locais de risco possivelmente tendo algum tipo de envolvimento, porém, segundo os técnicos apenas 6.500 tiveram algum nível de contaminação e/ou irradiação e que em apenas 249 esta exposição era merecedora de atenção e que apenas 120 causava preocupação ao ponto de serem internadas para descontaminação e/ou tratamento, destas apenas 16 exigia uma atenção redobrada, já que suas medulas óssea estavam comprometidas e/ou desenvolviam ulcerações (radiodermites) em partes do corpo. Outras 129 foram encaminhadas para uma unidade para apenas descontaminação a base de banhos com vinagre, permanganato, água e sabão, em algumas usaram dióxido de alumínio e até cápsulas de Radiogardase (Azul da Prússia) dissolvida em água, medicamento ainda em fase de experimentação neste tipo de procedimento.
De 16 pessoas, 14 em estado mais grave hematologicamente, foram levados para o Hospital Naval Marcílio Dias no Rio de Janeiro, destas, 04 morreram um mês após de Síndrome da Radiação. Dos focos irradiados ou contaminados retiraram 13.4 toneladas de lixo, parte deste altamente radioativo. Os móveis, roupas, animais, casas e até documentos das vítimas diretas viraram e hoje são rejeitos depositados no depósito de Abadia de Goiás.
Em 1988 o governador do estado Dr. Antonio Henrique Santillo criou uma entidade para prestar assistência integral às vítimas, além de promover pesquisas e qualificar recursos humanos segundo o seu Estatuto até a 3ª geração, porém o governador Marconi Ferreira Perillo Júnior extinguiu-a em 1999 sem critérios ou razões que justificasse o impensado ato. O tempo passou e hoje 18 anos depois do terrível acidente pouca coisa foi feita, e muito ainda está por fazer, um exemplo são os estudos e a qualificação, existe um número muito grande de pessoas que reivindicam seus direitos, são pessoas da Saúde que trabalharam com as vítimas diretas, militares que fizeram a vigilância dos locais contaminados, trabalhadores do transporte dos rejeitos, cidadãos que moravam próximos aos focos e parentes que tinham uma vida social intensa e diária com os diretamente radioacidentados. Isso tudo sem falar nos trabalhadores ligados aos comércios de recicláveis que tiveram em contatos por 16 dias com o material radioativo.
O maior acidente radiológico do mundo foi, e ainda é tratado de maneira amadora sem nenhuma preocupação com o aprendizado, com as pesquisas e pior, com as vítimas. A ciência e a Justiça não se entendem, muitos cientistas e médicos falam de uma latência longa e maleficências que o césio poderá trazer aos atingidos a médio e longo prazos, destacando cânceres diversos, as mutações celulares e anomalias genéticas, outros diminuem os efeitos nocivos chegando a afirmar que estes não existem, mas a literatura nos diz que, “em se tratando de radiação o melhor a fazer é não se contaminar” isto por que poucas informações estão disponíveis que possa avaliar a amplitude de possíveis danos. Por essas controvérsias quem realmente é interessado não consegue ver resgatados seus direitos e cidadania. Um exemplo vivo são os 86 funcionários que trabalhavam na Vigilância Sanitária à época em que a peça radioativa foi levada para aquela estatal, apenas 16 foram contemplados com pensões financeiras e assistência médica, os 70 restantes buscam nas autoridades os direitos que lhes são devidos, mas infelizmente negados.
Muitos servidores do Consórcio Rodoviário Intermunicipal (CRISA) que fizeram as demolições de construções, extração de terra contaminada e o transporte dos rejeitos radioativos estão buscando ressarcimentos, até hoje apenas um grupo de pessoas desta empresa recebe vantagens financeiras, mas não tem acesso algum a exames e medicamentos. Parte dos Bombeiros Militares e Policiais Militares que exerceram funções no recolhimento de vítimas diretas e vigilância dos focos de radiação recebem apenas pensão financeira que não lhes garantem assistência médica e medicamentosa, apesar de estar assegurado no Art. 5º da Lei estadual nº. 14.226/02 e 5º dos Estatutos da antiga FunLeide, que repito foi extinta irresponsavelmente pelo Governo.
Os vizinhos de focos de até 300 metros (depois baixou para 50 mt) que a princípio deveriam segundo a ciência, serem monitorados periodicamente, no entanto se quer são cadastrados pela Superintendência Leide das Neves, esta entidade está encarregada a dar assistência integral às vítimas em substituição à FunLeide. Também os parentes das vítimas diretas deveriam ser monitorados e acompanhados, mas os poderes políticos e jurídicos não lhes garantem absolutamente nada.
Atendendo a uma solicitação do Ministério da Saúde através da FUNASA em 2002 a portaria Nº. 60 de 2005 – GAB/SES foi assinada pelo então Secretário de Estado da Saúde em exercício Sr. Benevides Mamede Júnior, a qual criou um Grupo de Trabalho com o objetivo de fortalecer a SuLeide, elaborar propostas de criação do Centro de Referência e a reestruturação do protocolo de acompanhamento médico dos Grupos I, II e III de radioacidentados pelo Césio 137. Este chamado Grupo III teve um envolvimento não diretamente com o material radioativo, seu contato foi com vítimas diretas ou com objetos contaminados, e que de alguma forma podem ter o comprometimento de Saúde futuramente, já que os efeitos maléficos serão em longo prazo segundo a ciência. Também é de obrigação do GT buscar a fonte financiadora do Centro de Referência que deverá ser criado por orientação do Ministério da Saúde, para desenvolver pesquisas e dar assistência integral a todos que se encaixarem nos critérios que deverá ser adotado. “Centro de Referência que agora mudaram seu nome para Centro de Apoio”, mudança que certamente diminuirá a abrangência e a gravidade da tragédia.
Desde o início da criação do Grupo de Trabalho a Associação das Vítimas do Césio 137 (AVCésio), defendeu que o GT fosse formado por uma equipe multiinstitucional e multidisciplinar, más principalmente multiprofissional, num contexto geral, o drama não foi apenas clínico, mas de toda ordem, porém apesar da solicitação e da aprovação dentro do grupo, a portaria não nos atendeu e o GT ficou recheado de defensores do governo, governo esse que em seus discursos técnico-científicos e financeiros apontam só para a física nuclear e a crise financeira do pais, (apesar da roubalheira dos legisladores e governantes) desprezando a dor e as diferenças de pessoas que buscavam assegurar o pão de cada dia com o suor seu rosto quando foram surpreendidos pelo acaso, outros que buscavam usufruir o direito de ir vir. Este governo que hoje é defendido com unhas e dentes por médicos da CNEN, não podemos esquecer, foi ele o principal culpado pela tragédia, pois a segurança do cidadão é atribuição do estado (está na Carta Magna do país). Portanto é necessário que as três esferas de governo se unam para dar a assistência que os radioacidentados precisam e são detentores de direitos, também é importante que pesquisas sejam desenvolvidas e aprendizados ocorram, pois se outro acidente acontecer teremos mais profissionais capacitados, dando demonstrações de que a desgraça de uns pôde sim servir a outros.
Mas para que isto aconteça é preciso que os Parlamentares brasileiros e a Justiça tomem para si as responsabilidades na hora de criar e fazer valer as Leis. Segundo cientistas renomados no mundo inteiro, só em longo prazo poderemos ter respostas em relação aos efeitos da radiação no organismo humano, portanto é preciso tanto ter responsabilidades com o dinheiro público quanto com a vida. E ainda, “na dúvida devemos ficar com a vida”. Uma das maiores estudiosas da radiação já dizia “estudei a radioatividade por mais de trinta anos, estou morrendo sem saber de nada”. Meire currie.
Obs: Este documento foi lido e aprovado em Assembléia Ordinária da AVCésio, ás 9 horas e 30 minutos do dia 27 de Setembro de 2005
Goiânia, 27 de setembro de 2005
Odesson Alves Ferreira
Presidente
Parabéns meu caro, muito bom o documentário!
muito bom esse documentario