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As Celebrações, A Memória Traumática & Os Rituais de Aniversário

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Os dados usados neste texto fazem parte do arquivo pessoal da autora e foram coletados com o apoio de financiamento da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research (Grant n. 5969; 7046). 

Telma Camargo da Silva
Doutora em Antropologia. Autora da tese: Radiation Illness Representation and Experience: The Aftermath of the Goiânia Radiological Disaster. City University of New York, 2002.

– Hoje é dia da Mãe! – disse José. Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de Coca-Cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. (...) Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem autoridade? O rancor roncava no seu peito vazio. (...) Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.
Clarice LispectorFeliz Aniversário!


Os eventos que aconteceram em Goiânia e marcaram o mês de setembro de 1987 como o tempo físico do “maior desastre radiológico do mundo” sugerem que, em 2007, se anunciem os vinte anos do desastre. Mas o que significa esta passagem do tempo para os diferentes atores sociais do desastre? Quer dizer, a narrativa do aniversário é a mesma, entre outros, para os radioacidentados, para os estudiosos do tema, para os profissionais que trabalharam na contenção da radiação e na purificação dos espaços e dos corpos contaminados, para as organizações governamentais responsáveis pelo gerenciamento da catástrofe, para as ONGs? No caso de Anita, a avó do conto de Clarice Lispector, o tempo físico – 89 anos – é apropriado pelas diferentes significações que a ele atribuem a amiga, os familiares e a própria avó. Para os filhos, para a filha, para a viúva do filho predileto, o aniversário da avó se constitui em um encontro ritualístico que se renova a cada ano e que desnuda as múltiplas relações familiares que vão se constituindo e/ou se desfazendo ao longo do tempo. Para Anita, viver com 89 anos significa entender a invisibilidade, a dependência física e vivenciar “aquela angústia muda, de contemplação impotente” face à passagem de mais um aniversário.

O tempo físico, marcado na nossa cultura pelo calendário gregoriano, definido no século XVI, é sempre modelado pelo tempo social. Logo, as celebrações são significadas, entendidas e vividas num ritmo outro, assinalado, por exemplo, por espaços temporais de cinco anos, uma dezena de anos, vinte anos... O ritual das celebrações é engendrado, pois, por um tempo cíclico definido segundo os sentidos que a elas querem atribuir os guardiães de memória. Assim, as lembranças e o tempo apropriado para lembrar o passado descortinam, no presente, o campo de forças em que diferentes atores sociais disputam a representação dos eventos passados. Se, pois, a contagem do tempo é essencial para a produção de significações, para o entendimento de rituais que pela própria definição se processam em uma temporalidade repetitiva, falar de sobre aniversários é uma forma de entender as representações da vida social. O que dizer então dos sentidos construídos ao longo dos anos sobre a marcação do tempo do desastre radioativo de Goiânia?

Na maioria das vezes, a palavra “aniversário” é usada nas narrativas tecidas em torno de eventos festivos que celebram nascimentos, casamentos, formaturas. Outras vezes, aparece em anúncios de jornais indicando o “aniversário de morte” de um ente querido. Em ambos os casos, pode-se falar que essas celebrações remetem a uma temporalidade marcada por eventos pertencentes a ritos de passagem. O tempo cíclico assinala, nesses casos, transições de vida, de renascimentos, de mudanças e traduzem o pertencimento a uma identidade social ou a uma relação social que se escolhe conscientemente reverenciar e cuja memória se atualiza através do desempenho ritualístico. Como se processam então estes aniversários, estas celebrações, quando o evento motivador é um desastre e a ele se associa a memória traumática?

Nesses casos, a perspectiva antropológica assinala que o evento traumático só passa a ser ritualizado coletivamente pelas “comunidades de memória” quando se processa a passagem da experiência da catástrofe para a experiência da redenção (Turner, 1982). Ou seja, uma comunidade só escolhe datar um desastre e celebrar o seu pertencimento a esse evento, celebrando o seu aniversário, quando ela consegue associar as noções de superação e de sobrevivência às experiências vivenciadas na catástrofe.

As populações de cidades costeiras da Carolina do Norte e do Sul, nos Estados Unidos, devastadas pelo furacão Hugo, em 1989, participaram de vários rituais de celebração no primeiro aniversário do desastre. Estas comunidades organizaram um festival intitulado Remember Hugo Festivals, promoveram festas para agradecer aqueles que ajudaram a limpar a cidade, realizaram uma competição de malabarismo, uma vigília à luz de velas em frente ao Palácio da Justiça e uma festa à fantasia, onde os convidados deviam se vestir como estavam na noite e na manhã do desastre, portando os objetos usados no cotidiano vivenciado após a passagem do Hugo. Nesse caso, as observações de Forrest (1993) indicam que a celebração de pertencimento ao Hugo, e por isto a comemoração do aniversário, só foi possível porque as vítimas estabeleceram fortes laços sociais e emocionais no processo de superação do desastre. Os moradores das cidades criaram vínculos de confiança, compartilharam coragem no enfrentamento das adversidades e sentiram orgulho por terem reconstruído as cidades e suas vidas. Estas experiências compartilhadas engendraram uma nova comunidade de pertencimento definindo limites entre os habitantes dessas comunidades e os residentes das cidades vizinhas; entre os moradores que vivenciaram o desastre e os habitantes dessas cidades que se encontravam em viagem. É pois essa comunidade criada na vivência e superação do Furacão Hugo que festeja o aniversário do desastre.

A experiência do Holocausto, denominada em hebraico shoah, a exemplo do furacão Hugo, é ressignificada pelos sobreviventes do massacre de judeus europeus pelo nazismo e constituem também uma comunidade construída na vivência da tragédia. A memória traumática decorrente dos campos de concentração, das câmaras de gás e do exílio passam a integrar o ritmo e os rituais da vida pública dos judeus. Essa lembrança é atualizada em termos de rituais de comemoração, estabelecimento de monumentos públicos e privados e de re-elaborações artísticas e literárias do evento. Nesse caso, a experiência da catástrofe se transforma em experiência de redenção com a criação do Estado de Israel, em 1948. O rito de passagem se efetiva na mudança da condição de judeu em exílio para aquela engendrada pelo pertencimento ao Estado-Nação. Os rituais comemorativos e os lugares de memória se instituem como uma metáfora da comemoração da vida (Friedlander e Seligman, 1994). Aqui, os lugares e as datas comemorativas do Shoah interligam a catástrofe aos aspectos de superação representados pelo estabelecimento do Estado-Nação e assim o desastre é celebrado ritualisticamente.

Os aniversários de desastre seguem, em sua maioria, o padrão de quaisquer outros aniversários. Alguns estudiosos afirmam que o primeiro aniversário é o mais significativo porque os fatos vivenciados ainda estão muito vivos nas experiências cotidianas (Birtchnell, 1986 apud Forrest, 1993: 448). Depois, as lembranças submergem e reaparecem no período convencional de cinco anos e na seqüência, no ritmo de dez anos, vinte anos... No caso de Goiânia, os rituais relativos aos aniversários do desastre radioativo obedecem também este tempo cíclico. O primeiro aniversário do desastre é celebrado por uma missa na Paróquia de Santo Antônio, no Setor Pedro Ludovico, com a presença dos radioacidentados; por uma mesa-redonda na Universidade Federal de Goiás intitulada Césio 137 – Um Ano Depois; por um encontro de saúde, a II Maratona Goiana de Terapias Alternativas com o tema Alternativas para Goiânia depois do Césio 137 e pelo I Simpósio Internacional sobre o Acidente Radioativo com o Césio 137 intitulado Acidente radioativo de Goiânia – um ano depois, coordenado pela Fundação Leide das Neves Ferreira, uma instituição do governo do Estado de Goiás, criada em 1988 para dar assistência às vítimas e realizar pesquisas sobre os efeitos nos humanos da contaminação com o césio 137 e da exposição à radiação. O nome foi escolhido em homenagem à criança de seis anos, uma das primeiras vítimas fatais do desastre.

Em 1992, na manifestação dos cinco anos, os membros da Associação das Vítimas do Césio 137 com o apoio de entidades solidárias como a Universidade Católica de Goiás, organizaram uma manifestação na Feria Hippie, então localizada no centro de Goiânia, e na feira da Praça do Sol, no Setor Oeste, intitulada Goiânia Alegria! onde distribuíram uma carta-manifesto para protestar contra o descaso e a lentidão do governo no atendimento à população atingida pelo desastre. Nesse documento eles afirmaram: “A população de Goiânia precisa estar alerta! O acidente com o césio 137 não acabou!” (Diário da Manhã, 13 de setembro de 1992). Para os habitantes da cidade diretamente atingidos pela catástrofe, o desastre continuava na medida em que se sentiam estigmatizados, enquanto os seus problemas de saúde não recebiam a devida atenção dos órgãos governamentais e os valores das pensões não eram atualizados. Os cinco anos do desastre foram também marcados por celebrações artísticas. O fotógrafo Nelson Santos organizou uma mostra intitulada Ecos de uma tragédia e artistas plásticos, entre os quais Antunes Arantes, realizaram uma performance no terreno onde ficava o Instituto Goiano de Radioterapia como sinal de alerta aos perigos da radiação.

No ciclo ritualístico dos aniversários do desastre com o césio 137, 1997 marcou o ano das celebrações dos dez anos e o desnudar das significações conflitantes processadas em torno das memórias da tragédia (Silva, 2005). Por um lado, as instituições governamentais promoveram dois eventos com repercussões internacionais: o primeiro foi a inauguração do Depósito Definitivo de Rejeitos Radioativos e do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste, no então Parque Estadual de Abadia de Goiás; e o segundo, a realização da conferência internacional O Acidente Radiológico com o Césio 137: Goiânia Dez Anos DepoisNessas celebrações, o sentido atribuído tanto pelas performances como pelas narrativas construídas sobre os fatos de 1987 era de que o ano de 1997 representava “uma página virada na história do desastre” e de que “tudo estava sob controle”. Os rejeitos radioativos, que por dez anos ficaram a céu aberto, estavam agora acomodados definitivamente e a Comissão Nacional de Energia Nuclear assumia o compromisso de monitorar o local por mais cinqüenta anos, ou seja, até 2047. Os efeitos da radiação sobre os indivíduos atingidos estavam sob controle do conhecimento científico e o número das pessoas atingidas contido pelos parâmetros da biomedicina e pelo saber da medicina nuclear.

Por outro lado, outras narrativas mediam o tempo do desastre como um ritual que repetia uma celebração de perda, de sofrimento e de medo. O artista plástico Siron Franco, que, em 1987, produzira a série Césio (aqui parcialmente reproduzida), considerada por ele a “reportagem visual do acidente” pintou, dez anos depois, a tela intitulada Quinta Vítima (Jornal O Popular, 28 de setembro de 1997)Esta manifestação artística pode ser lida como um ato performativo do sentimento de que a idéia da morte continuava presente em 1997. Uma pesquisa quantitativa encomendada pelo jornal O Popular revelou que 53,6% dos goianienses entrevistados acreditavam na possibilidade de o acidente causar algum tipo de risco à população. A manchete do caderno especial desse mesmo diário, intitulado Césio 10 anos depois, foi “O medo ainda não acabou”. Os vizinhos das casas contaminadas organizaram no lote concretado da Rua 57, do então Bairro Popular, uma celebração de luto que denominaram de O Forró do Césio. Para eles, esta era uma forma de protesto para marcar o drama vivido pelos indivíduos atingidos pelo desastre.

Os dez anos também marcaram a emergência de vozes que reivindicavam uma relação causal entre identidade profissional e doença, como o caso dos policiais militares que trabalharam na contenção do desastre radioativo e lutavam pelo reconhecimento como vítimas (Silva, 1998). Para os radioacidentados, a memória estava inscrita nos corpos, nas dores e no estigma que vivenciavam em seus cotidianos, como expressam as palavras de Ivo Alves Ferreira: “Não conseguimos esquecer. Quando não é a pele, que ficou marcada, são as pessoas (que nos marcam)” (Jornal Opção, 14 a 20 de setembro de 1997). É essa idéia da memória corporificada, atualizada na experiência do presente das pessoas impactadas pelo desastre, que aparece nas manchetes de jornais que noticiaram os dez anos do desastre: “Césio 137: 10 anos de sofrimento” (Top News); “Césio ainda é ferida aberta em Goiás” (Jornal do Brasil); “Um drama que não acaba” (Jornal do Brasil). Para estes atores sociais, as celebrações dos dez anos indicavam a perspectiva de um aniversário com a atualização no presente das marcas que ficaram nos corpos e do trauma que se insere nos atos do cotidiano. Para os outros, o tempo ritualístico é o do aniversário do evento circunscrito no passado.

No caso de Goiânia, a experiência da catástrofe não se transformou em uma experiência de redenção. A dúvida de que Goiânia esteja mesmo livre da radiação; a falta de confiança nos agentes responsáveis pelo trabalho de descontaminação realizado na fase emergencial, entendida como 1987-1988; o medo de que os radioacidentados possam ainda conter o césio 137 em seus corpos; a falta de assistência à saúde das vítimas; a contínua luta de grupos sociais que se consideram atingidos pelo desastre e não foram reconhecidos pelos órgãos governamentais – como os trabalhadores do Consórcio Rodoviário Intermunicipal S.A. que atuaram no transporte dos rejeitos radioativos de Goiânia até o depósito provisório de Abadia – permeiam as narrativas construídas em 2007 e atualizam o desastre. Estas múltiplas vozes apontam para a existência de uma memória traumática que tece as comemorações e caracteriza parte dos rituais de Goiânia como “aniversário com o desastre”. Neste caso, as vítimas e a população afetada pela catástrofe não engendraram uma comunidade de superação e o rito de passagem não se efetivou. O renascimento do contexto de morte trazido pelo desastre não aconteceu. Isto diferencia fundamentalmente as comemorações de aniversário no caso do desastre radioativo das celebrações de outros desastres.

Como os familiares da festa de aniversário de Anita, a avó do conto de Clarice Lispector, os participantes do “aniversário do desastre” retornam simbolicamente para suas moradas. Contudo, aqueles cujos rituais apontam para o aniversário com desastre, ficam como a avó ouvindo a frase “Até o ano que vem!”, quando as condições de sua existência seriam mais uma vez lembradas e comemoradas mas não modificadas. Um trecho da carta-manifesto, intitulada Três anos de agonia e dor, e divulgada pela Associação das Vítimas do Césio 137, em 1990, no terceiro “aniversário com desastre” ilustra minha analogia:

Cansados e desanimados de contar a mesma história todos os dias para pessoas que curiosamente escutam nossos apelos e depois desaparecem deixando as promessas que jamais foram cumpridas, e o tormento continua. (...) 
Como estarão estas vítimas hoje?
Estamos vivos!... ainda.

Talvez para que o ritual de passagem se efetive e se constitua uma comunidade de redenção no caso do desastre de Goiânia, os sobreviventes precisem, assim como Anita em sua festa de 89 anos, cuspir metaforicamente as suas angústias, cacarejar um riso frouxo e despertar de sua mudez. Talvez, assim, quem sabe, a festa de aniversário dos vinte anos do desastre provoque uma escuta das narrativas que há vinte anos os aniversariantes insistem em contar e tornar audíveis.


Referências
FORREST, Thomas R. “Disaster Anniversary: A social reconstruction of time”. Sociological inquiry, Vol. 63, no 4, Nov. 1993, p. 444-456. FRIEDLANDER, Saul; SELIGMAN, Adam B. “The Isralei memory of the Shoah: on symbols, rituals, and ideological polarization”. In: FRIEDLANDER, Roger; BODEN, Deirdre (org.). Space, time and modernity. University of California Press: Los Angeles, 1994, p. 356 – 371.
LISPECTOR, Clarice. “Feliz aniversário”. In: Laços de família. Editora Rocco: Rio de Janeiro. 1998, p. 54. SILVA, Telma Camargo da. “As fronteiras das lembranças: memória corporificada, construção de identidades e purificação simbólica no caso de desastre radioativo”. Vivência, no 28, 2005, p. 57-73. _____. “Soldado é superior ao tempo: Da ordem militar à experiência do corpo como locus de resistência”. Revista Horizontes antropológicos. Número especial: Antropologia do Corpo e da Saúde. Organizado por Ondina Fachel Leal. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Ano 4; no 9, Págs. 119-143. Julho de 1998.
TURNER, Victor. Celebration: studies in festival and rituals. Washington, D.C. Smithsonian. 1982.

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