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O jornalista que foi vítima do césio

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WEBER BORGES


Repórter atento, convocou o então presidente José Sarney, durante o programa de Hebe Camargo, e foi demitido pela rede de televisão dirigida por Silvio Santos. Dono de um acervo gigante sobre o acidente radioativo de Goiânia, o jornalista diz que a universidade precisa discutir mais o legado científico do acidente provocado pelo césio

Aos 62 anos, Weber Borges é um jornalista experimentado e paciente. Em 1987, com 42 anos, era mais afoito, mas já era experiente. Diretor do programa Goiânia Urgente, da TV Goiá, então retransmissora da programação do SBT de Silvio Santos, descobriu, meio por acaso, que o acidente radioativo de Goiânia, conhecido também como “acidente do césio”, estava sendo “escondido” da opinião pública. Na verdade, percebeu o repórter atento, que tem o hábito de filmar quase tudo, que o governador Henrique Santillo, o secretário da Saúde, Antônio Faleiros, ambos médicos, e técnicos do governo ainda não sabiam exatamente o que havia acontecido, em setembro de 1987.

Só com a presença de técnicos da Comissão Nacional de Energia Nucler na capital, como José Júlio Rozenthal, que hoje mora em Israel (trabalha na área nuclear do governo judeu), é que começou-se a dimensionar com mais precisão o acidente. No início, nem mesmo os técnicos entenderam direito o que estava acontecendo — daí Weber Borges dizer que houve também outro grave acidente: o da desinformação. Muitos técnicos andaram pelos locais afetados pela radioatividade sem nenhuma proteção, percebeu o olhar agudo de Weber Borges.

Autor de um livro seminal para se entender o acidente, Eu Também Sou Vítima — A Verdadeira História Sobre o Acidente com o Césio 37 em Goiânia (editado de modo mais criterioso, extirpando os erros provocados talvez pela pressa, teria sido best seller), Weber Borges é, por assim dizer, também uma vítima do césio. Não que tenha sido contaminado pela radioatividade. Foi, digamos, sacrificado pela TV Goiá. Motivo: presente no programa de Hebe Camargo, convidado a aproveitar os 30 segundos finais, Weber Borges soltou o verbo e disse que o presidente José Sarney (aquele do bigode e do jaquetão), no lugar de visitar a Colômbia, que não sairia do lugar, deveria visitar Goiânia, para verificar, pessoalmente, a extensão do acidente. Língua solta, o jornalista acrescentou que deveria trazer a mulher, Marly, para provar que, apesar do acidente, a capital goiana não oferecia riscos. Resultado: Sarney veio, sim, mas Weber Borges perdeu o emprego. Comentou-se na época que Silvio Santos, informado pelo Palácio do Planalto, teria ficado chateado com a impertinência do jornalista. Era preciso punir o senso de oportunidade do repórter. Portanto, indiretamente, Weber Borges é uma vítima do césio.

Dono de excelente acervo de documentos do césio, Weber Borges conta que ele tem sido pouco consultado. Embora não tenha noção precisa do que se produz academicamente, diz que a universidade precisa discutir, com mais freqüência, o legado científico do acidente radioativo. Na próxima edição, o Jornal Opção publica a segunda parte da entrevista.

Euler de França Belém — Como primeiro jornalista a se inteirar do acidente com o césio 137, como o sr. obteve as informações?

O Goiânia Urgente havia marcado uma entrevista sobre intoxicação alimentar e pautou as cenas para o Hospital de Doenças Tropicais (HDT). A pessoa que atendeu disse: “Não há pessoas intoxicadas com alimentação. Mas há pessoas com intoxicação atômica”. Como a palavra atômica me deixou atônito, pedi para Rachel Azeredo fazer uma reportagem. A reportagem não esclarecia os fatos, mas, quando desligam as luzes, a Câmara ainda grava uns cinco segundos, e eu tinha o hábito de ver o vídeo com fone de ouvido para não perder nada. No final da gravação, alguém dizia: “O [Antônio] Faleiros [secretário da Saúde do governo de Santillo] vai ferrar a gente”. Percebi que alguma coisa estava errada e decidimos correr atrás dos fatos.

José Maria e Silva — Vocês voltaram ao HDT?

Na hora do almoço, por acaso, passei na porta da Nuclebrás. Entrei, perguntei quem era o gerente e joguei um verde: “Estão dizendo que aconteceu alguma coisa em Goiânia que tem a ver com a Nuclebrás”. Ele respondeu: “Nada”. Num lance de sorte, eu disse: “Estou voltando para o Goiânia Urgente para dizer que você informa que não está acontecendo nada”. Ele disse: “Um momento”. Buscou um envelope pardo e me deu um relatório. Li e, como a linguagem técnica é complicada, nada entendi. Mas começava a destrinchar o acidente radioativo.

Euler de França Belém — O Goiânia Urgente passou a ser o ponto de referência de informações a respeito do acidente radioativo?

As pessoas nos procuravam em busca de informações sobre o que estava acontecendo, mas o acidente já tinha acontecido. Havia certo desespero. O relatório que obtive na Nuclebrás dizia, a respeito do acidente, que se tratava de “um capítulo que está sendo estudado no mundo inteiro, sem solução imediata”. Começamos a ouvir cientistas — biólogos e físicos — e descobrimos que ninguém sabia nada.

Euler de França Belém — No seu livro, o sr. conta que encontrou um bilhete em sua mesa informando a respeito da chegada de José Júlio Rozenthal, o responsável pelo setor de fiscalização da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).

Até hoje não sei quem deixou o bilhete, mas certamente era alguém que queria esclarecer os fatos. Fui ao aeroporto para ver o “desconhecido” José Júlio Rozenthal. Noutro dia, fui para a Secretaria de Saúde, por volta das 7 horas, e o secretário Antônio Faleiros estava conversando com Rozenthal. De repente, a secretária de Faleiros atende um telefonema e diz: “O sr. Rex Nazaré Alves, de Viena, quer falar com o sr. José Júlio Rozenthal”. Ele entra na sala e faz o primeiro relatório, oral, a respeito do acidente. Eu estava lendo jornal e fingi que não estava ouvindo. Depois do que Rozenthal falou para Rex Nazaré, entendi o relatório da Nuclebrás — percebi que os goianienses corriam sérios riscos.

Euler de França Belém — O sr. diz que, orientado não se sabe por quem, o Corpo de Bombeiros planejou jogar o material radioativo no Rio Meia Ponte. Quem barrou isto?

O físico Walter Mendes impediu que a pedra do césio fosse jogada no Meia Ponte, ou seja, impediu que a cidade fosse contaminada de modo muito mais amplo. Ele disse que era preciso conhecer o problema primeiro antes de tomar qualquer iniciativa. Salvou a cidade.

Hélmiton Prateado — A mulher de Devair Ferreira carregou a pedra de césio dentro de um ônibus.

Maria Gabriela carregou a pedra de césio dentro de um ônibus, expondo as pessoas à radiação.

Hélmiton Prateado — A área de comunicação dos governos federal e estadual falhou?

O setor de comunicação, não apenas dos governos, tem o dever de colaborar para esclarecer o acidente radioativo. É preciso levantar todas as possibilidades e, se for o caso, deve-se fazer um manual. Observe-se que hoje, na mídia, discute-se exclusivamente a questão das vítimas, o que é muito importante, mas é preciso debater também o acidente. Na época, propus para o Rex Nazaré, presidente da CNEN, que, por intermédio de cartilhas, o assunto fosse exposto nas escolas. O que aconteceu em Goiânia? Um acidente radioativo, mas não se sabe exatamente sua extensão — tanto que novas vítimas estão aparecendo, e há certa má vontade, entre as autoridades, de reconhecê-las. Não fosse o Ministério Público, que tem sido atuante, a situação seria pior.

Hélmiton Prateado — Com o depósito radioativo de Abadia de Goiás, o problema está, pelo menos em parte, contornado.

Lembre-se que o problema só será resolvido, segundo as previsões dos cientistas, daqui a 280 anos. Eram 300 anos em 1987. Portanto, não se trata de um probleminha, e, como tal, deve ser debatido pelos brasileiros, sobretudo pelos goianienses.

Euler de França Belém — O sr. esteve no local do acidente e, num primeiro momento, sem nenhuma proteção. Como escapou à contaminação?

A jornalista Rachel Azeredo esteve mais vezes no local. Estive lá muitas vezes, mas o pessoal da CNEN já estava fazendo o trabalho de limpeza dos locais e examinando as pessoas. Já se tinha a consciência que não se podia entrar mais no local sem botas, sem macacão especial, sem máscara. Procede que, num primeiro momento, os próprios cientistas entraram nos locais do acidente sem sapatos e roupas especiais. Tenho vídeos da época e, ao examiná-los, me pego dizendo: “Poxa, o fulano é PhD em física e está lá sem nenhuma proteção”. O PhD estava sentado no chão, raspando o sapato com vinagre. Ele havia entrado na casinha do cachorro, na Rua 57, na casa do Roberto Santos Alves. O cão era muito grande e pesado e, devido ao césio, estava muito mole, então o cientista foi obrigado a arrastá-lo. E fez isto sem máscara e sem luvas. Não era só o povão que estava despreparado para o acidente — a comunidade científica também estava.

Euler de França Belém — Os cientistas, como o físico Walter Mendes, que foram aos locais do acidente sem vestimentas adequadas não se contaminaram?

A CNEN é muito forte e pagou um preço para que cada um exercesse sua função. Walter Mendes cumpriu sua parte e hoje tem um alto cargo na área de energia nuclear do governo federal. As pessoas que trabalharam inicialmente no local do acidente ou recebendo as vítimas nos hospitais não tinham noção exata da dimensão do acidente, aliás, nem sabiam do que se tratava. Há também os poucos lembrados funcionários do Crisa, atual Agetop, que trabalharam muito nos locais do acidente e, apesar de heróis, não são citados. Policiais militares também trabalharam intensamente, e sem receber informações precisas a respeito dos riscos. Uma pessoa me procurou para saber como receber um aumento de 20 por cento no salário dos funcionários que trabalham na área do depósito. A CNEN pagou as pessoas para trabalharem no local, mas não explicou direito qual era o trabalho e suas conseqüências. Filmei pessoas pegando terra contaminada com as mãos.

Euler de França Belém — Se alguns técnicos estiveram no local sem a proteção adequada, por que não há registros de contaminação deles? No livro o sr. diz: “Técnicos com seus sapatos comuns contaminados e logicamente com seus corpos irradiados”.

Como andei pelo local, colheram amostras de mim, mas até hoje não me forneceram nenhum resultado. Falam que as amostras estão em São Paulo. Disseram que, se eu for a São Paulo, consigo as informações. Ora, deviam enviá-las, pois sou a parte interessada.

Euler de França Belém — O governador goiano de então, Henrique Santillo, era médico. Mas o sr. diz, no livro, que ninguém entendeu, num primeiro momento, o que havia acontecido.

Santillo era um governante bem-intencionado, mas demorou a entender o que estava acontecendo.

Hélmiton Prateado — Os integrantes do governo Santillo entraram em pânico?

Sim, num primeiro momento. Santillo fez uma reunião no Palácio das Esmeraldas, mas não conseguia entender e explicar o que estava acontecendo. Digo sempre que um dos grandes acidentes foi de comunicação. O cientista não sabia explicar o acidente numa linguagem coloquial e acabou não sendo crível. Depois de cada explicação, os leigos, a maioria, ficavam mais confusos. Sem contar que alguns “cientistas” apareceram, até da Alemanha, e deram declarações bombásticas, que, posteriormente, foram desmentidas pelos fatos. Uma vez, vi uma mulher assustada dizendo que estava contaminada e exigindo ser atendida. O técnico sabia que era uma “neura”, pois a senhora havia sido atendida de manhã, e disse: “Tire a roupa”. A mulher não quis. O técnico insistiu: “Tem de tirar para medir o índice de radiação”. Na verdade, ela precisava muito mais de assistência social e psicológica, pois não tinha onde dormir, não tinha mais roupa e comida. Estava desesperada. Terezinha Fabiano, uma das vítimas do acidente e uma mulher séria, dormiu na rua vários dias para dar um exemplo. Ela dizia: “Demorei a construir minha casa, e os técnicos do governo federal chegam, derrubam-na em cinco minutos e agora querem eu more com meus filhos num local escolhido por eles”. Ela queria uma casa com todo o corpo afetivo, com o resgate de sua história pessoal. O aspecto humano foi negligenciado pelos governos.

Euler de França Belém — O sr. também foi uma vítima do acidente radioativo, pois perdeu o emprego na TV Goiá.

[Risos] Fui demitido sumariamente porque fiz jornalismo. Fui ao programa da Hebe Camargo e convoquei o presidente José Sarney a visitar Goiânia. Ele iria visitar a Colômbia antes de vir a Goiânia, então rebelei-me e praticamente o intimei a atender os goianos. Eu e Rachel Azeredo fomos afastados. Depois contornaram e Rachel foi apenas suspensa por alguns dias.

Euler de França Belém — Eu ouvi, na época, que o sr., além de convocar Sarney, citou o nome de sua mulher, Marly, o que irritou o presidente. Silvio Santos teria recebido uma reclamação diretamente da Presidência da República.

Citei a sra. Marly com a intenção de que, ao visitar Goiânia acompanhado da mulher, como é praxe nas viagens, o presidente Sarney contribuísse para tranqüilizar os goianos. Entenderam, porém, que era apenas uma provocação de um jornalista. Pedi também que o presidente da Legião Brasileira de Assistência (LBA), Marcos Vinícius Vilaça, desse apoio às vítimas, que eram — são — pobres e não tinham mais onde morar.

Euler de França Belém — Como o sr. avalia a conduta do José Júlio Rozenthal, da CNEN? Um doutor em direito atômico diz que a CNEN é a principal responsável pelo acidente.

Gosto imensamente do homem Rozenthal, mas não posso deixar de concordar que é o principal responsável pelo acidente radioativo de Goiânia.

Hélmiton Prateado — Por qual motivo?

Rozenthal era o responsável pela fiscalização da bomba de césio que estava na sede abandonada do Instituto Goiano de Radioterapia. Dez anos antes do acidente, em 1977, ele enviou um relatório para o Ministério do Planejamento informando que um acidente nuclear ou radiológico não tinha solução imediata. Noutras palavras, Rozenthal sabia da gravidade do problema. Portanto, como cientista e autoridade, não foi um fiscal eficiente, ao deixar a bomba de césio num local abandonado.

Hélmiton Prateado — No lugar de tirar a bomba de césio de um local de risco, ficaram disputando competência na Justiça.

Enquanto a questão era discutida na Justiça de Goiás, uma pessoa foi lá na antiga sede do Instituto de Radioterapia e roubou a peça. A culpa é de quem? A corda arrebentou do lado mais fraco.

Euler de França Belém — Os donos do Instituto Goiano de Radioterapia não deveriam ter posto a boca no trombone? O doutor em direito atômico ouvido pelo sr. diz que eles têm culpa “secundária”.

Eles foram julgados, mas avalio que os médicos não são culpados. Eles escreveram cartas, mas não foram ouvidos pela Comissão Nacional de Energia Nuclear.

Euler de França Belém — Mas por que os donos do Instituto Goiano de Radioterapia não se rebelaram e não retiraram a peça?

Porque, atendendo a uma decisão judicial, não podiam retirá-la do local. A questão era litigiosa. O local era vigiado por um guarda 24 horas por dia. Mas ele faltou no dia em que os catadores de papel passaram pelo local.

Euler de França Belém — Depois do acidente, o trabalho de José Júlio Rozenthal foi eficiente?

O trabalho feito em Goiânia pela CNEN é considerado perfeito ou quase-perfeito pela comunidade científica internacional. Rozenthal soube dirigir a equipe. Ele dava as declarações mais contundentes, mas sem alarmismo. O físico Carlos Alberto Nogueira, hábil e bem-humorado, era mais light. A discussão mais científica, e a respeito da questão do poder, ficava por conta do Rex Nazaré.

José Maria e Silva — Embora popularesco, o Goiânia Urgente teve um papel importante no esclarecimento da população?

Teve, porque, no caso, o Goiânia Urgente ateve-se aos fatos, e deixou o sensacionalismo de lado. Não precisava de sensacionalismo — a questão era mesmo muito grave. O programa foi importante, porque ajudou a esclarecer as dúvidas da sociedade.

Euler de França Belém — O processo de descontaminação demorou três meses, de setembro a dezembro. Descontaminou tudo mesmo?

A CNEN fez um trabalho bem-feito, e não sou eu quem diz, e sim cientistas independentes. Vou abrir um parêntese. Nos Estados Unidos, uma empresa vendeu para outra empresa, que fabricava telhados, uma série de material contaminado. A cidade ficou contaminada. O governo enviou técnicos e eles examinaram telhado por telhado, e gastaram três anos nesse processo. Rex Nazaré perguntava aos técnicos mais ou menos o seguinte: “Onde pode ter contaminação?”. Ao ser informado, completava: “Arranca e leva embora”. Daí as três toneladas de terra.

Euler de França Belém — Depois de ouvir cientistas, o sr. diz que tiraram terra e objetos em excesso.

Os técnicos estavam certos, mas não houve exagero. Era uma questão de segurança.

José Maria e Silva — Há um inventário do que foi levado para o depósito de Abadia de Goiás?

Não tenho uma informação precisa. Mas os técnicos eram meticulosos e certamente, se tiveram tempo suficiente, inventariam o que foi levado.

Euler de França Belém — O sr. registra no livro a curiosa história de um casamento que ocorreu no momento em que os técnicos faziam o trabalho de descontaminação na Rua 57. Uma cena fabulosa.

Quando vi, não acreditei. Chego na Rua 57, onde estava tudo fechado, com cordas demarcando a área, policiais de prontidão e gente lavando a rua para tirar césio, e, de repente, vejo, bem próximo, um pessoal todo arrumado e cheiroso. Pergunto: “O que está acontecendo?”. Responderam que ia acontecer um casamento. Fiquei impressionado. Aí aparece um casal simpático, bem-vestido. O noivo me disse: “Em nome de Deus, nós vamos nos casar”. Eu expliquei que eles estavam a um metro do local do acidente radiológico, mas ele me disse: “Deus vai nos proteger. Não vai acontecer nada com a gente”. Percebendo a cena inusitada, decidi assistir e filmar o casamento. Eu estava de macacão, luva e máscara. Me senti um Federico Fellini.

Hélmiton Prateado — Os noivos e parentes não se importaram?

Pelo contrário. Eles pensaram que eu era da TV Globo e não ficaram constrangidos.

Euler de França Belém — De dentro da igreja, quando estava filmando, você diz ter percebido os tambores com o lixo radioativo coletado pelos técnicos.

Eu estava filmando de joelhos para não assustar as pessoas, principalmente as crianças. A máscara preta, que simulava uma boca de cachorro, era assustadora. De repente, no final do corredor, vejo um latão, que estava na porta da igreja Assembléia de Deus. Jorge Pontual, então editor do Globo Repórter, da TV Globo, viu a gravação e ficou impressionado. A cena era mesmo meio surrealista, mas não para os noivos e seus convidados, que estavam alheios ao frenesi externo.

José Maria e Silva — A igreja não foi interditada?

Não. Ela estava sempre fechada. Só abria à noite e nos finais de semana.

Hélmiton Prateado — Como é a história de uma senhora que conectou o acidente com Nostradamus?

Eu estava na rua e uma mulher me chamou. Ela perguntou: “O sr. acredita em Deus?”. Respondi que acreditava. Ela continuou: “Leia Nostradamus, centúria 5, quadra 57”. A sra. explicou que o acidente radioativo de Goiânia havia sido previsto por Nostradamus.

As novas vítimas do acidente radioativo

Weber Borges é entrevistado por José Maria e Silva, Hélmiton Prateado e Euler de França Belém
Euler de França Belém — Numa entrevista de 1987, o cientista Robert Gale disse que número de pessoas irradiadas deveria ser de 5 mil a 10 mil. O sr. acrescenta, com dados de 2003: “Hoje, o número de vítimas desse acidente está longe de ser calculado. Pelo Ministério Público, já ultrapassa 621 pessoas”. Quatro anos depois de sua afirmativa, qual é o quadro?

Uma incógnita. Sabe-se que o número de pessoas que morreram com câncer, provavelmente em decorrência do acidente radioativo, é grande. Mas, se há algum levantamento, com informações detalhadas, está guardado. Naquela época, Robert Gale estava vindo de Chernobyl e tinha informações quentes sobre acidentes nucleares e, por extensão, radiológicos. Houve quem se precipitasse ao citar números precisos, no final da década de 1980, sem levar em conta que o acidente teria desdobramentos, ou seja, novas pessoas poderiam aparecer doentes, como apareceram.

Euler de França Belém — Em famílias que mantiveram contato com o césio, segundo registra seu livro, nasceram crianças com má formação. Depois do lançamento do livro, o sr. tem notícia de novos casos? Os médicos fazem a conexão com o acidente?

Os médicos e os cientistas são muito cuidadosos na questão de fazer ou não conexão das más formações com o acidente radioativo. O fato é que há casos de crianças que nasceram com má formação — uma delas faleceu — e pelo menos um dos pais teve relação com o césio.

José Maria e Silva — Em 1987, li na imprensa pessoas afirmando que em Goiânia havia acontecido o maior acidente radioativo do planeta. O que é um absurdo completo. O acidente de Chernobyl é muito maior do que o de Goiânia.

O de Chernobyl nada tem a ver com césio.

José Maria e Silva — O acidente de Chernobyl, na Ucrânia, fez mais muito mais vítimas do que o de Goiânia. Mais de 20 anos depois, continua afetando pessoas.

O de Goiânia é considerado um acidente radiológico, e por ter sido césio é o único do mundo. Pode ser menor do que o de Chernobyl, mas, por ser o único do mundo envolvendo césio, despertou o interesse da comunidade científica internacional. De césio, é o maior do mundo.

Euler de França Belém — O médico cubano Romero Cordies disse que “os goianos sofreram mais seqüelas psicológicas e menos conseqüências físicas que os sobreviventes da explosão da usina de Chernobyl”. Não é um exagero?

O dr. Cordies certamente quis dizer que, aqui, faltou mais informação e amparo psicológico. No início, principalmente, nem os cientistas sabiam como explicar o acidente e, quando começaram a explicar, a população duvidava das informações, sobretudo por que eram desencontradas. Esse médico casou-se com uma vítima do acidente, Terezinha Nunes Fabiano, mas depois se separaram. Ela mora nos Estados Unidos.

Euler de França Belém — Por que Júlio Rozenthal disse que as lições do acidente de Goiânia “não foram totalmente discutidas e aprendidas”?

O acidente tem sido discutido na Unicamp e em outras universidades, mas a discussão pública, de um acidente que envolveu várias vítimas, não tem sido feita. Observe-se que os principais técnicos e cientistas que trabalharam na descontaminação em Goiânia se aposentaram. São pessoas experientes e que estão fora do mercado. Cadê a história deles? Rex Nazaré disse: “O futuro da energia nuclear passa necessariamente pela seriedade, e, ao sermos levados a Goiânia, a experiência de todos, de agir numa emergência de grande porte, era praticamente nenhuma”. Num país que tem usina nuclear, em Angra dos Reis, a declaração do presidente da CNEN é muito grave.

Euler de França Belém — O sr. diz que os cérebros das quatro primeiras vítimas fatais do acidente desapareceram do Hospital Marcílio Dias, da Marinha, no Rio de Janeiro.

Obtive a informação no IRD. Me contaram que um braço do Roberto Santos Alves ficou lá. O autoritarismo científico não pode esquecer que há sentimentos envolvidos.

Euler de França Belém — No caso de Goiânia morreram, inicialmente, quatro pessoas.

Num primeiro momento. Não tenho dados objetivos, mas sei que morreram mais do que quatro pessoas, não foram apenas Leide das Neves, Maria Gabriela Ferreira, Israel Batista dos Santos e Admilson Alves de Souza. Morreram também a gari Zilda Maria de Jesus e Maria das Graças Vieira, que tiveram câncer.

Euler de França Belém — No livro, o sr. conta que o comando da PM mandou soldados da Polícia Montada vigiarem o lixo radioativo, mas sem os cavalos. Por que preservaram os cavalos, mas não as pessoas?

Estranhamente, os soldados da Polícia Montada vigiaram as áreas contaminadas sem cavalos. Eu, pelo menos, não vi cavalos. Há registros de soldados que trabalharam nos locais do acidente e, mais tarde, ainda jovens, tiveram câncer e, alguns, ficaram estéreis. Um morreu de câncer.

José Maria e Silva — Os soldados estavam protegidos com máscaras e sapatos especiais?

Não, ninguém andava protegido.

Euler de França Belém — A mãe de Leide das Neves queria uma lembrança da filha e pediu que buscassem uma fotografia que estava dentro de sua casa, que estava contaminada. Quem buscou a foto?

Fico emocionado até hoje. A mãe da Leide, Lourdes das Neves Ferreira, me disse, chorando, que sua casa ia ser demolida e não ia sobrar nada como lembrança da filha. Ela queria resgatar a memória afetiva da filha; queria uma fotografia de Leide das Neves, que morreu aos 6 anos. Levei a questão a uma química do IRD, para saber como entrar na casa. Era uma operação de guerra. Tinha-se quatro minutos e meio para buscar a foto. Os técnicos conheciam a casa mais do que a proprietária e diziam: “Em tal lugar, onde ficou a fonte do césio, você não pode pôr o pé”. Entramos, vi o berço da menina e um pedaço de pão — Leide teria comido pão (contaminado) com ovo. Abrimos o guarda-roupa e recuperamos a fotografia. Quando se encontraram, a química e Lourdes se abraçaram e choraram. A cena, entre uma cientista e uma mãe, mais do que vítima do acidente, foi comovente. Até hoje guardo a cena na memória, como se o fato tivesse acontecido ontem. A técnica pediu desculpas para Lourdes. Quando desenrolaram a fotografia, ela caiu de frente para mim, e tive uma sensação de estranhamento.

Euler de França Belém — No livro, o sr. diz que o governador Henrique Santillo manipulou a mídia contra a CNEN.

Não foi bem uma manipulação. A falta de informação precisa gera conflito. Como a imprensa publicava mais a fala do governador Santillo e de seus auxiliares, o outro lado, a CNEN, ficava como vilã — o que forçou o órgão federal a divulgar suas informações. Deputados e secretários do governo falavam muito, claro que em defesa dos goianos, mas em geral sem respaldo científico. É fato que o pau quebrou. Mas o debate acabou sendo salutar, pois a CNEN foi obrigada a se manifestar, a esclarecer fatos, a se tornar mais aberta.

José Maria e Silva — Santillo disse que a CNEN só veio para Goiás por que ele cobrou e pressionou.

Talvez tenha sido a vontade de Santillo, um homem respeitável. Mas o assunto era tão grave que a CNEN não esperaria a cobrança do governador. Ela tinha que estar presente. Se não viesse para Goiás, com seus melhores técnicos, a pressão não seria apenas de Santillo, e sim internacional. Alemães, americanos, chineses, japoneses, russos e belgas estavam de olho.

José Maria e Silva — Santillo dizia que o Brasil só se interessou pelo acidente de Goiás quando fez a cobrança publicamente. Teria cobrado durante 15 dias seguidos.

O pessoal da CNEN chegou no dia 28 de setembro de 1987, e o governador Henrique Santillo nem sabia do acidente. Ao saber do acidente, o físico Walter Mendes ligou para a CNEN e pediu reforço. Ele também ligou para o secretário da Saúde, Antônio Faleiros, que envolveu o governador e um grupo de pessoas. Faleiros trabalhou de forma incansável. Mas, até entender o que havia acontecido, demorou alguns dias. Nesse período, não foram poucos dias, o presidente da CNEN, Rex Nazaré, era impedido de entrar. Toda vez que anunciava que estava chegando, era atacado na mídia.

José Maria e Silva — Como Rex Nazaré não era político, e sim cientista, quem estava sendo atacado era o governo federal. Não era um ataque pessoal.

Mas o cargo dele era político e a crise foi política. O técnico ia trabalhar, em busca do césio. Qualquer coisa que Rex falava se transformava em fato político. Ele era o representante do presidente da República, José Sarney. Depois houve uma reunião e cada um ficou com seu pedaço. Um negócio bem político. E aí acabou a crise.

Hélmiton Prateado — A conversa de Santillo com Hebe Camargo, por telefone, não foi um erro?

Santillo deveria ter ido ao programa para contar a história do acontecido ao Brasil e defender Goiás. A chave da conversa telefônica está na mão de quem entrevista. O entrevistador pode desligar quando quiser. A crise marcou Goiás; gerou muito ódio.

Euler de França Belém — Na construção do depósito radioativo, houve algum conflito entre Santillo e o então ministro Iris Rezende?

Se houve, não foi explícito. Iris ajudou Goiás, dentro do que era possível fazer pelo Estado no governo Sarney. O vice-presidente da Agência de Energia Nuclear de Viena estava no Brasil e concedeu entrevista no Rio de Janeiro. Ele queria ser entrevistado em Goiânia, porque queria ver o depósito radioativo — o único do mundo. Na época do acidente, falaram que o lixo radioativo seria levado para a Serra do Cachimbo, mas não aceitaram. No final, optaram por Abadia de Goiás, perto de Goiânia.

Euler de França Belém — O pessoal de Abadia de Goiás conformou-se com o depósito?

A população aceitou como um fato consumado.

Euler de França Belém — Noutro país, seria um ponto de visitação de turistas.

Há uma proposta da CNEN de transformar o local num parque florestal. Há até plantas alimentícias para se fazer testes. A água é coletada.

Euler de França Belém — Os cientistas com os quais o sr. conversou dizem que o depósito é inteiramente seguro?

É seguro, sim, segundo todos os cientistas que entrevistei. O trabalho é considerado muito bem-feito. Os técnicos fizeram buracos enormes, forrados com chumbo, colocaram o lixo dentro e cobriram com concreto.

Euler de França Belém — A CNEN não divulga as informações colhidas durante o trabalho de descontaminar setores de Goiânia?

Numa sociedade aberta, é preciso divulgar as informações.

Universidade tem de discutir legado científico do acidente

Euler de França Belém — As universidades Federal e Católica de Goiás, talvez por inexperiência, deram escassa contribuição na resolução do acidente radioativo de Goiânia. Hoje, 20 anos depois, a contribuição para entender o acidente foi ampliada?

A doutora Walderez Loureiro Miguel, do curso de Serviço Social da Universidade Católica, estudou a situação das vítimas. Uma antropóloga escreveu um trabalho. Há dois ou três estudos. Sei que na UFG há alguns estudiosos, na área científica, mas seus trabalhos são pouco divulgados. O fato é que meu amplo acervo foi doado para a Associação das Vítimas do Césio, mas ninguém me procurou. É preciso reunir as informações das pessoas que lidaram com o acidente. Recentemente, jornalistas da TV Globo estiveram comigo — estão produzindo reportagens especiais sobre o acidente — e tentamos descobrir a senhora Farisa, da assistência social do governo, e não conseguimos. Ela trabalhou muito, chefiou uma grande equipe e ajudou muita gente. A Farisa certamente fez um relatório, mas não nunca tive acesso a ele, sem contar que poderia dar um depoimento muito rico. O corpo de psicologia colocado para atender as vítimas, que estavam muito abaladas, era composto de garotas recém-formadas. Evidentemente, não davam conta de atender as pessoas. Tinham boa vontade, mas eram inexperientes. A Católica pediu para o psicólogo e professor Júlio Nascimento fazer um estudo.

Euler de França Belém — Como é a história do Azul da Prússia?

O químico João Alfredo Medeiros disse: “Passe remédio de tingir cabelo que a pessoa vai ficar curada”. Muitos cientistas riram e quase o “lincharam”. Com o uso de Azul da Prússia, muitas pessoas foram salvas. Compenetrados, os cientistas estavam superprotegidos, usando contador geiger, e João Alfredo estava lavando um vestidinho. Perguntaram: “Por que você está perdendo tempo?” Ele disse: “Estou tirando o césio. O vestido é tão bonito e a criança certamente vai querer usá-lo”. Alguns acharam que ele era louco.

Euler de França Belém — No seu livro, o sr. cita o médico Lenine Fenelon da Costa, do Hospital Naval Marcílio Dias, que diz que o Azul da Prússia foi “melhorado” no Brasil.

Não existia no Brasil; foi importado da Alemanha. Depois, começou a ser fabricado no Brasil. O acidente de Goiânia acabou por contribuir para o avanço da ciência mundial.

José Maria e Silva — A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência lançou uma revista especial da Ciência Hoje com o título de Autos de Goiânia. Eles fazem um balanço científico do acidente. Lá eles admitem que muito do que feito foi decidido no local.

Tenho um exemplar da revista. Os cientistas improvisaram e, felizmente, acertaram.

Euler de França Belém — Como era a chamada “sauna atômica”?

O físico Carlos Alberto Nogueira de Oliveira, do setor de radioproteção, chamava uma salinha de “sauna atômica”. Ele punha a pessoa num pequeno quartinho, forrava o chão de chumbo e colocava uma caneleta para canalizar água. As pessoas suavam muito e, segundo Nogueira, o césio saía pelos poros. Nogueira também inventou o medidor de corpo inteiro. Ele está em Viena. As autoridades e os cientistas goianos deveriam ficar mais atentos aos avanços gerados em 1987.

Euler de França Belém — O médico Nelson José Lima Valverde, perito da Agência Internacional de Energia Atômica, disse que, “na área médica, não acrescentamos nada após o acidente de Goiânia. Aliás, quantos médicos no Brasil sabem identificar uma radiotermite (radiolesão localizada)? Não temos um hospital de referência para assuntos nucleares. Qual o planejamento e o preparo para evitar um acidente desse tipo? Está na hora de retirar a máscara”.

O Brasil tem as usinas nucleares de Angra dos Reis e está planejando outras, mas não se tem um hospital de referência. Costumam argumentar que os acidentes na área são raros, e é verdade, mas podem ocorrer novos acidentes.


Fonte: http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=Entrevistas&idjornal=239

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