POLÊMICA/CÉSIO-137
Passados quase dezesseis anos do acidente ocorrido em Goiânia, os radioacidentados ainda convivem com toda sorte de preconceitos e infortúnios
GUILLERMO RIVERA
Em Goiânia, no ano de 1987, acontecia um fato que conferiria à cidade status internacional. Entretanto, não foi nenhuma notícia positiva que repercutiria o nome de Goiânia por todo o mundo. Um acidente com o elemento químico césio (Cs), nuclídeo 137 — conhecido simplesmente como césio-137 — trouxe a morte e o pânico à cidade. Após 16 anos do acidente, o Jornal Opção conversa com vítimas e envolvidos na tragédia. Colhendo vários depoimentos, chega-se a uma triste constatação. Devido à falta de informações, há a possibilidade de uma repetição do caso em Goiás e no Brasil. Além disso, as vítimas diretas ou indiretas do caso, reclamam seus direitos, que, segundo afirmam, estão sendo escamoteados.
Um Pouco de História — As origens do acidente remontam, na verdade, a dois anos antes. A Santa Casa de Misericórdia de Goiânia funcionava em um terreno na avenida Paranaíba, Centro, e emprestava um prédio ao lado para o Instituto Goiano de Radiologia (IGR). Em 1985, a Santa Casa deixou o local e o terreno passou para o Instituto de Previdência do Estado de Goiás (Ipasgo). O prédio ficou abandonado. Nele, restaram algumas coisas. Entre elas, um aparelho usado no tratamento do câncer que continha uma bomba com 100 gramas de césio-137 para radioterapia.
A bomba foi retirada em partes, entre os dias 10 e 13 de setembro, por três pessoas: Kardec Sebastião dos Santos, Wagner Mota Pereira e Roberto Santos Alves. Eles pretendiam vender o material como ferro-velho, posto que o aparelho continha quase 300 quilos de chumbo. A máquina passou pelas casas de Roberto e Wagner, na rua 57, Setor Norte Ferroviário. Os dois começaram a desmanchar o aparelho. Depois, levaram-no para o ferro-velho de Devair Alves Ferreira, onde foi desmontado de vez. Mas Wagner e Roberto já começavam a apresentar sintomas de contaminação radioativa, tais como tonteiras, náuseas e vômitos. Após piora em seu quadro clínico, Wagner foi ao Hospital São Lucas e teve o mal-estar diagnosticado como reação alérgica a alimentos.
Na noite do dia 18, Devair passava pelo pátio do ferro-velho, quando percebeu um intenso brilho azul vindo da cápsula de aço. Atraído pela beleza e fascínio do brilho, levou a cápsula para dentro de sua casa. Durante os dias seguintes, parentes, vizinhos e amigos o visitaram para ver o material. Devair e sua mulher, Maria Gabriela, ignoravam o fato de apresentarem cefaléias e vômitos. Ao se desmontar a pedra, algumas centenas de curies (medida de radioatividade) de césio-137 foram derramadas em um pequeno pedaço de tapete colocado sobre o solo, à sombra de duas mangueiras.
Devair distribui parte do pó a parentes, entre eles seu irmão Ivo Alves Ferreira, que levou o Césio-137 para casa, dentro do bolso da calça. Na hora do almoço, Ivo colocou peças da pedra na mesa, permitindo que todos a tocassem. A filha de Ivo, Leide das Neves Ferreira, que tinha apenas seis anos, tocou na pedra e ingeriu algumas partículas do césio-137 no pão com ovo que comia.
Médicos do Hospital de Doenças Tropicais (HDT) suspeitaram que as lesões poderiam ter sido originadas de contaminação radioativa. O físico Walter Mendes Ferreira foi chamado para investigar o caso. De posse de um monitor usado em medições geológicas, ele se dirigiu ao prédio da Vigilância Sanitária de Goiás. No caminho, Walter ligou o aparelho que, em segundos, já acusava um elevado grau de contaminação radioativa. Ele adquiriu outro medidor, temendo a possibilidade de ter usado um contador estragado. Com a repetição do fato, o físico teve certeza da contaminação. Retornando apressadamente à Vigilância, Walter conseguiu impedir que bombeiros jogassem o material em um rio próximo à cidade. Imediatamente, a Secretaria de Saúde do Estado foi avisada e, no dia 29 de setembro, técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) chegaram na cidade, dando o alerta. Entre eles, o maior destaque era para o então presidente da entidade, Rex Nazaré Alves, e o físico José Júlio Rozental.
A rua 57 foi interditada. Pessoas foram examinadas e internadas. O Estádio Olímpico, no Centro, foi utilizado como base para se examinar as centenas de pessoas que iam chegando. Providenciou-se uma descontaminação inicial, que consistia em um banho com água, sabão e vinagre. De um grupo de 249 pessoas, 22 tinham sido altamente expostas e estavam, portanto, isoladas. Cerca de 120 foram descontaminadas e liberadas. 129 pessoas passaram a ser monitoradas. Desse grupo, 79 tinham contaminação externa e 14 já estavam com o quadro clínico muito agravado, sendo removidas para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Nesse grupo, estavam as quatro vítimas fatais do acidente: Leide das Neves Ferreira, Maria Gabriela Ferreira, 29 anos (esposa de Devair Alves Ferreira), Israel Batista dos Santos, 22 anos, funcionário do ferro-velho de Devair, e Admílson Alves Souza, 17 anos (também funcionário do ferro-velho de Devair). A situação só seria controlada — e Goiânia, oficialmente, livre da radiação — três meses depois, no dia 21 de dezembro de 1987.
Envolvidos à Época — Muitas pessoas, além das que foram expostas diretamente à radiação, tiveram algum grau de envolvimento com a tragédia. É o caso, por exemplo, do jornalista Weber Borges, que afirma ter acompanhado em primeira mão o caso. Weber conta que era produtor de jornalismo da TV Goyá, antiga retransmissora do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Ao coletar dados para fazer uma matéria sobre intoxicação alimentar, o jornalista se deparou com os chamados “intoxicados atômicos”. Decidiu, então, investigar o caso, que vem acompanhando desde então, tendo participado de vários simpósios, congressos e conferências sobre o tema. Weber também coletou o máximo possível de dados e documentos sobre o caso. “No começo, eu nem sabia o que era césio”, confessa. O resultado desses 16 anos de documentação é o livro Eu Também Sou Vítima, que Weber planeja lançar ainda este ano. (O jornalista conta mais detalhes sobre sua participação na tragédia em entrevista na página A-40)
Antônio Faleiros, secretário da Saúde do governo do Estado de Goiás em 1987 e atualmente presidente do PSDB estadual, acha que o assunto está enterrado — pelo menos, por parte expressiva do povo. “Se a população se esqueceu, eu não sei, mas as autoridades com certeza se esqueceram do assunto”, critica. Faleiros cobra uma legislação que punisse os responsáveis pelo evento. Quais seriam esses responsáveis? “A única responsável é a Cnen”, afirma.
Faleiros pede também um debate aberto sobre o ocorrido, para que o trágico fato não fique esquecido. “Se o assunto ficar morno, não há evolução”, aponta. Outra questão levantada pelo presidente do PSDB estadual é que o assunto tem de ser discutido no Brasil inteiro. “Não é só Goiânia que pode ter esse problema”, alerta. Quanto às pesquisas sobre câncer, Faleiros diz que a necessidade de se fazer tais pesquisas é normal. Ele não crê, porém, que esse tipo de acompanhamento gere resultados que possam assombrar a população goianiense. “Não acredito que tenha aumentado o índice de câncer”.
Debater Para Lembrar — A deputada estadual Rachel Azeredo (PFL), na época do acidente, era repórter da TV Goyá. Ela teve contato direto com a radiação do césio-137 quando teve de produzir reportagens sobre o evento, e lembra que a desinformação campeava em 1987. “O grande problema é que nem entendíamos o que acontecia. A manipulação da informação foi mais fácil de se fazer, devido à complexidade do assunto”, relata. Porém, a deputada conta que nunca teve medo de se contaminar quando fez seu material jornalístico. “Onde o presidente da Cnen entra, eu podia entrar”, deduz.
Rachel Azeredo lamenta, também, a falta de memória por parte dos goianienses. “O tempo vai passando e as pessoas vão se afastando do evento”, lastima. Ela acrescenta que a imprensa atual está bem renovada, o que dificulta a divulgação das informações. Outro quadro que mudou bastante foi o dos políticos, de 1987 para cá. Henrique Santillo, por exemplo, faleceu no ano passado. Rachel Azeredo atribui esses problemas à falta de memória de um país que não tem educação — única saída para reverter o quadro. Ela propõe que o assunto seja discutido durante todo um dia, anualmente, nos colégios da cidade. “Os hoje adolescentes, nascidos à época, não sabem de nada sobre o acidente”, diz a deputada.
Um fator para o qual Rachel Azeredo muito alertou em 1987 era sobre o risco de câncer entre os radioacidentados, no qual ela discorda de Faleiros. Ela diz que seu alerta continua válido em 2003. “Ainda acho que o risco existe, e que não temos informações suficientes”, pondera. A deputada conta que participou de dois congressos internacionais sobre o tema e constatou que o produto deixa rastros no meio ambiente e nas pessoas. Além disso, ela lembra que fez um levantamento no quadrilátero da área onde ocorreu o caso e constatou oito casos de câncer na quadra da rua 57. “Será uma coincidência? Acho que não. E não dá para discutirmos saúde usando o termo coincidência”, afirma. “E nem estou discutindo questão das pensões”, completa.
Para a deputada, o assunto é envolto em mistério, com direito a sonegação de informações, para evitar o pânico geral entre a população. Mas não é isso que ela pensa que deve acontecer. “Estamos na transição do evento. Esta é a fase crítica de aparecimento de casos de câncer. Agora é que devíamos debater o assunto”, reafirma. E faz um paralelo com o bombardeio nuclear sofrido pelas cidades japonesas em agosto de 1945, ao fim da 2º Guerra Mundial. “Hiroxima pára por três minutos para lembrar o ocorrido”.
O diretor do Departamento de Instalações e Materiais Nucleares da Cnen na época, José Júlio Rozental, não forneceu nenhuma declaração ao Jornal Opção. Ele reside, hoje, em Israel.
Visão de um Acidentado — Odesson Alves Ferreira, motorista de ônibus aposentado, é um dos radioacidentados que mais ajuda seus colegas de tragédia. Bem-informado, ele diz que o fato de o Governo de Goiás ter atentado para o problema foi somente porque técnicos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) fizeram um estudo a pedido do Ministério da Saúde. Neste estudo, constataram que a latência do césio-137 seria de 15 anos e que, a partir daí, muitas coisas iriam mudar. “Para pior”, completa. Odesson também conta que, nos últimos dezesseis anos, nada mudou para melhor. “Só tenho a reclamar”, diz. Ele afirma que a maioria dos radioacidentados recebe pensões da União no valor de 133 reais por mês — uma pensão indenizatória com uma cifra quase irônica. Alguns, como Odesson, recebem também uma pensão do Estado de Goiás no valor de 744 reais. Mas quem sobrevive apenas com o auxílio da União se vê com grandes problemas, alerta o motorista de ônibus. “Por causa da discriminação, muitas pessoas não têm nenhum emprego”, diz.
Entre suas reclamações, está o histórico do atendimento. Ele lembra que antes havia a Fundação Leide das Neves (FunLeide), cujo nome homenageava a primeira vítima fatal do acidente. A FunLeide, diz Odesson, foi criada pelo então governador Henrique Santillo (PMDB) para dar assistência às vitimas até a terceira geração. Essa fundação foi extinta em 1999 e, em seu lugar, foi criada a Superintendência Leide das Neves (Suleide), com o mesmo propósito. “Mas, infelizmente, quatro anos depois a Suleide acabou”, relata Odesson. Em seu lugar, conta, só existe a Secretaria de Ciência e Tecnologia (Secitec), e as vítimas foram levadas para o Hospital Geral de Goiânia (HGG). “Ou seja, o atendimento agora é no HGG, onde essas pessoas foram jogadas no meio de mais 16 mil pacientes daquele hospital”, reclama.
Odesson ressalva, porém, que os radioacidentados não querem se dar prioridade. “É a gravidade do problema que exige isso”, frisa. O motorista de ônibus conta que a discriminação gera esta obrigatoriedade de um tratamento diferenciado. “Você coloca uma pessoa vítima de um acidente radioativo no meio de pessoas leigas, e a discriminação é imensa”, avisa. Odesson diz que esses radioacidentados, depois de um tempo, não têm mais vontade de viver. “Elas vivem uma depressão profunda. A partir do momento em que estão no meio daquele povão, o sofrimento é maior. E o atendimento lá não é bom nem para aquelas 16 mil pessoas, imagine para as vítimas do acidente, que é completamente diferente”, critica.
Não há dúvida de que o acidente com césio-137 foi uma das maiores tragédias que afligiu a capital dos goianos. Odesson crê que as autoridades locais, estaduais e nacionais não vêem assim. “Um acidente tão grave como foi esse e só agora, depois de quinze anos do ocorrido, é que acontecem pesquisas”. O atraso nessas pesquisas preocupa o motorista de ônibus. Ele alerta que a Sucitec foi criada para fazer pesquisas sobre os males da radioatividade somente quinze anos depois, que é justamente o período de latência do acidente. “Então qualquer tipo de doença que aconteça agora não tem como provar que é em decorrência do acidente ou não. Isso, a gente vê que foi uma perda de tempo muito grande”, lamenta.
Odesson avalia quais mudanças seriam necessárias no atendimento. Na sua opinião, os médicos que trabalham com os radioacidentados deveriam ser melhor capacitados. Odesson explica que a radiação não traz consigo uma doença específica, mas um agravamento de todas as doenças possíveis. “Uma hipertensão numa pessoa comum é grave. Em um radioacidentado, a gravidade é muitas vezes maior. Um simples resfriado em você pode ser uma pneumonia em mim”, diz. O motorista de ônibus afirma que foi isso o que aconteceu com Ivo Alves Ferreira, pai de Leide, que faleceu no começo deste ano. “Ele morreu com enfisema pulmonar. Mas o que levou a esse enfisema? Só o fato de estar fumando? Nem tanto, porque o lado psicológico da pessoa também tem de ser tratado”, especula.
Outra pessoa mencionada por Odesson é Devair Alves Ferreira, que faleceu em 1994. Segundo os médicos, ele morreu por cirrose hepática, causada por bebida alcoólica. “Só que, depois que ele morreu, constatou-se que tinha câncer em três órgãos”, acusa. Odesson diz que o soldado Marques de Souza Rodrigues atualmente está com câncer na cabeça e retirou oito tumores malignos. Agora, relata Odesson, está havendo uma complicação muito grande. “E isso não é analisado com atenção”, conta.
Drama de uma Vítima — Quanto à sua própria saúde, Odesson confessa que não houve mudanças para pior. “Sempre estive com a saúde boa, não tenho tido maiores problemas”, relata. Porém, o motorista de ônibus lembra que dentro do grupo de radioacidentados isto se percebe claramente. Uma filha de Odesson, por exemplo, tem 16 anos de idade e não pode praticar esportes. “Ela tem uma dor nos ossos das pernas muito intensa. Aliás, a maior parte das mulheres teve incidência de osteoporose muito prematura”, diz.
As dores que afligem Odesson são as do preconceito. “Isso é o que mais existe”, confirma. Ele se lembra que foi se inscrever em um colégio no Setor Bueno, que precisava de motorista de ônibus. “Pus a observação que eu era radioacidentado. Mas logo depois, fiquei sabendo que a vaga já estava preenchida. Como?”, questiona. Para combater o preconceito, ele acredita em esclarecimento. Por isso, estudou bastante o assunto e se dedica a palestras, que tomam a maior parte do seu tempo. “Quando sou convidado para dar palestras, mesmo em colégios estaduais e municipais, a iniciativa não parte dos governos, e sim, dos diretores. Às vezes, dos alunos. As autoridades nunca nos chamam. Elas se esqueceram da gente”, lamenta Odesson. Ele diz que quer levar esclarecimentos às pessoas, até para que esse tipo de acidente nunca mais aconteça. Odesson é, também, membro do Conselho Estadual de Saúde. “Para ter mais liberdade para cobrar das autoridades”, conta. Voltou também a estudar, porque pretende se formar em Direito para ajudar os demais radioacidentados. “É um sonho distante, pois ainda faço supletivo. Mas quem sabe?”, acredita o motorista.
O que é o césio-137
O césio-137 é um nuclídeo radioativo do elemento césio (Cs) — nome que vem do latim caesium, significando “céu azul”. Com meia-vida (tempo em que seus níveis de radiação demoram a se reduzir à metade da quantia anterior) de 30 anos, ele é produzido artificialmente pela fissão (divisão) do urânio ou plutônio. Ele se desintegra, formando o nuclídeo de bário Ba-137 m (sendo m = metaestável, isto é, excitado). Ele emite as chamadas radiações beta. O nuclídeo de bário emite raios gama no processo de desexcitação. Esses raios, altamente penetrantes, permitem que o césio-137 seja facilmente observável por meio de detectores de radiação. O nuclídeo normal do césio seria o césio-133, e os demais 15 conhecidos até agora, incluindo o césio-137, são altamente radioativos. Tecnicamente, a cápsula aberta em Goiânia não continha césio-137 puro, e sim o chamado cloreto de césio-137 (CsCl).
Weber Borges
“O césio foi um acidente de comunicação”
Para o jornalista, os culpados pelo acidente foram a negligência e a desinformação, que persistem
GUILLERMO RIVERA
O jornalista Weber Borges, de 59 anos, é o autor do livro Eu Também Sou Vítima (ainda sem data de lançamento oficial). Borges relata detalhes do acidente radiológico ocorrido em Goiânia, em 1987. Uma das primeiras testemunhas do fato, o jornalista terminou seu livro depois de 15 anos e farta documentação sobre o ocorrido. Nesta entrevista cedida ao Jornal Opção, onde comenta sobre o assunto, Weber aponta seu dedo acusador em várias direções. Não poupa críticas à Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), ao ex-presidente José Sarney, às universidades e autoridades locais. O jornalista foi entrevistado na segunda-feira, 8, na redação do Jornal Opção.
Como começou a sua participação no acidente?
Foi muito interessante. Eu liguei para o Hospital de Doenças Tropicais (HDT), para ver se tinha alguém intoxicado e assim poder fazer uma matéria sobre latas de sardinha na geladeira. Enfim, essas coisas que podem criar uma intoxicação. O rapaz que me atendeu ao telefone falou que casos daquele jeito não tinham. “Mas intoxicado atômico tem um monte”, ele me disse. Eu achei muito curiosa essa expressão. Aí eu fui atrás e descobri que aquilo que estava lá era diferente do normal. Foi quando comecei a invertigar o acidente.
O acompanhamento do acidente se deu a partir de quando?
A partir desse telefonema, eu fiquei questionando o que seria aquela intoxicação atômica. Quando cheguei na Nuclebrás, perguntei para um técnico: o que está acontecendo que você não quer me contar? Então ele me entregou um envelope e disse: ‘‘Se você disser que eu te dei isso, vou dizer que é mentira.’’ Era um relatório confidencial para o Ministério do Planejamento da Presidência da República. Confesso que não entendi nada, porque era um relatório técnico. Com o desenvolver do dia, eu comecei a entender mais ou menos como funcionava aquilo. Fui atrás do então secretário Estadual de Saúde, Antônio Faleiros, às 7 horas da manhã do outro dia. Foi quando presenciei o primeiro relatório oral do José Júlio Rozental [então diretor do Departamento de Instalações e Materiais Nucleares da Cnen]. Tomei, assim, consciência do acidente.
É verdade que o sr. foi demitido por ter cobrado providências do presidente, José Sarney?
Fui para a televisão fazer uma denúncia de que havia um acidente sério. Até então o acidente não tinha dono. Resolvi que, já que havia sido convidado para ir ao programa da Hebe [Camargo, apresentadora do SBT], iria convocar o presidente do Brasil para que viesse à Goiânia. Descobri que o programa era na quarta-feira e que, na sexta-feira, o presidente Sarney iria para a Colômbia. Ir para Colômbia antes de vir à Goiânia é crime. Foi isso que eu denunciei no programa. Disse: “Presidente, antes de o senhor ir para a Colômbia, venha para Goiânia, que é tão pertinho de Brasília”. O Sarney chegou aqui no outro dia, e fui demitido.
O sr. escreveu um livro sobre o acidente ocorrido com o césio-137. Como surgiu essa preocupação com o acidente?
Primeiro, pela falta de explicações e de informação. Desde o início, penso que foi primeiro um acidente de comunicação, e depois foi um acidente científico. A informação não chega claramente às pessoas. Até hoje, há um policiamento do imaginário. Fica todo mundo com medo daquilo acontecer de novo e não discute. Levantou-se, através de uma nota técnica da Funasa [Fundação Nacional de Saúde], que Goiânia sofreria um surto de câncer em um período de 15 anos, que é o período de latência da doença. Já estão dizendo que houve uma deturpação do enfoque da nota. Eu nunca vi nota técnica deturpada. Por isso, resolvi escrever o livro.
O seu livro se chama Eu Também Sou Vítima. Porque a escolha desse título?
Porque eu também sou vítima. Não sei a quantidade de radiação que levei durante o período do acidente, quando cobri o acontecido. Fui discriminado algumas vezes. Até gostaria de cobrar da Comissão Nacional de Energia Nuclear o resultado dos meus exames feitos na época, porque até hoje não sei quanto recebi de dosagem. Apesar de ter mandado e-mails, ligado, pedindo para que as pessoas me enviassem — até para que eu colocasse no livro —, não obtive nada.
Como é possível provar que as pessoas que tiveram câncer o tiveram por contato direto com o césio 137?
Como não sou médico, apenas jornalista, sigo a opinião dos médicos. Durante o programa da Hebe Camargo, em São Paulo, o próprio médico da Comissão Nacional de Energia Nuclear respondeu que existiria a possibilidade de câncer na população que teve contato. Robert Gale, que foi o médico responsável pelo tratamento das vítimas do acidente de Chernobyl [explosão nuclear acontecida em uma usina na Ucrânia, à época URSS, um ano antes do acidente de Goiânia], disse que as vítimas, diretas e indiretas, atingiriam dez mil pessoas. Só que hoje afirmam que as pessoas que aparecem com câncer não têm nada a ver com o césio. Por que não têm? Para esta pergunta, eu gostaria de obter uma resposta.
Uma reprise do acidente acontecendo hoje, nós estaríamos na mesma situação de 16 anos atrás?
Pior. Porque as grandes cabeças não estão hoje mais mexendo com isso. Estão aposentadas, em outras atividades. O Rex Nazaré Alves, presidente da Cnen à época, hoje é professor do Instituto Militar de Engenharia (IME). O Rozental, que recebeu o título de cidadão goiano, hoje mora em Israel.
As universidades ou os governos locais não saberiam como lidar com essa situação hoje?
Em termos de universidades, eu vi a área de assistência social trabalhando, algumas coisas no setor de psicologia. E só. Tenho informação de que fizeram exames de sangue em várias pessoas na época para se fazer o parâmetro entre os contaminados. Cadê esse resultado? Se a sociedade não pode ficar discutindo isso porque fere muito Goiânia, pois todo mundo fica incomodado, cadê essas informações para deixar a sociedade tranqüila?
O senhor acha que uma divulgação maior evitaria o medo?
Nem é divulgação, mas debate sobre o assunto. Vamos discutir isso, para acabar exatamente com esse medo e explicar que ainda existem preconceitos, que as pessoas ainda sofrem com isso. Só aparecem médicos famosos que estão no mundo inteiro, rodando atrás de congressos, quando eles precisam de novas informações para apresentar em congressos. Não estou sabendo de ninguém de importância que está vindo aqui para tratar das vítimas. Aliás, eu quero saber porque acabou a Fundação Leide das Neves?
Há um responsável direto pelo acidente?
O responsável direto pelo acidente, foi quem escreveu e assinou em 1977 um relatório para a Presidência da República. O relatório dizia o seguinte: “Rejeitos sólidos de alto teor radioativo constituem capítulo que ainda está sendo estudado no mundo inteiro, sem solução imediata”. Ou seja, cientificamente sabia-se o quanto era perigoso deixar numa casa abandonada uma peça contendo “rejeitos sólidos de alto teor radioativo”. O responsável pela fiscalização e autor do relatório confidencial, José Júlio Rozental, era membro da Cnen e diretor-técnico do Ciclo de Debates da Secretaria de Planejamento da Presidência da República.
José Júlio Rozental seria o único responsável?
Não. São vários os responsáveis. Por exemplo, a falta de fiscalização da Cnen, e quem acompanhava a disputa pelo terreno e que sabia do problema. Este é o método certo para encontrar os culpados. Com os responsáveis alinhados, pune-se e silencia a crise, o que não aconteceu. Sem responsabilidade definida, como foi o caso, cria-se um desastre. Faltou comunicação, e na falta de comunicação, criam-se situações sem controle. Na verdade, a falta de comunicação sobre o acidente do césio 137 em Goiânia existe até hoje. Por isso a minha paciência científica de aguardar 15 anos para escrever a verdade.
Fonte: http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=Reportagens&idjornal=45&idrep=348
Olá Nitschka
Obrigada pelo convite para conhecer seu blog sobre o acidente radioativo de Goiânia, cidade onde moro e pude acompanhar o drama das pessoas atingidas pelo césio assim como toda a movimentação da imprensa em torno do caso, as autoridades do CNEN para proteger as vítimas e remover todo aquele lixo que levaram dias e dias.
Lembro-me da importância dada pela jornalista Raquel Azeredo que fazia plantão no local para a cobertura. Sua fisionomia circunspeta e séria durante os relatos nos levava a crer que aquele acidente não era tão simples e sem importância. Raquel Azeredo é uma jornalista consciente e muito bem informada que varava madrugadas a dentro com o seu microfone e equipe de filmagens, registrando as internações das pessoas suspeitas de contaminação no Hospital de Doenças Tropicais de Goiânia assim como o embarque das vítimas para São Paulo no Hospital Marcílio Dias, e passando à população informações corretas sobre a realidade do caso cobrando dos responsáveis pelo descaso e abandono da cápsula no antigo Instituto Radiológico de Goiânia que foi desativado e encontrava-se em total abandono num terreno no centro da cidade coberto pela vegetação que cresceu no local. Eu me lembro bem, era no cento da cidade bem ao lado da Santa Casa de Goiânia.
Em 1994 foi construído um grande centro de cultura e convenções de grande importância para Goiás composto por uma mega estrutura, com 51 mil m2. Que você poderá ter uma vista geral AQUI e em outro ângulo a sua entrada AQUI
Eu não sabia da existência de 300 fontes de radiação desaparecidas e espalhadas pelo Brasil, e isso é muito grave, pois milhares de pessoas ainda não tem noção do perigo real dessas cápsulas.
Obrigada por publicar minha postagem CÉSIO 137 – MARCAS ETERNAS no Caliandra do Cerrado.
Fico feliz e gratificada em ver que de alguma forma essa postagem está tendo o alcance que eu gostaria que tivesse.
Acompanho com prazer seu blog.
Um grande abraço
A url das imagens também:
http://img704.imageshack.us/img704/6307/07092009882.jpg
http://img25.imageshack.us/img25/9577/centrodeconvencoesdegoi.jpg
Bom dia,
Estou estudando sobre Vigilância Sanitária e o Caso do Césio. Se esse acidente tivesse ocorrido nos dias de hoje, estaríamos preparados para contê-lo de forma melhor organizada e com menos vítimas que em 87?
Abraço
Jane Tonetti (janetonetti@gmail.com)
Ola Jane, infelizmente não. Há um bom artigo que fala sobre a Vigilância Sanitária -> http://perigoconcreto.blogspot.com/2010/05/o-acidente-com-o-cesio-137-sob-o-olhar.html
Há um trabalho interessante sobre o assunto: IMPLICAÇÕES JURÍDICO-PENAIS DO ACIDENTE COM O CÉSIO-137 de Carolina Chaves Soares da Universidade Federal de Goias. Podemos obtê-lo no endereço eletrônico:
http://pintassilgo2.ipen.br/biblioteca/cd/go10anosdep/Cnen/doc/manu58.PDF